ERGUEI-VOS E VENCEI!

         Era um desses dias nublados do mês de junho, em que o inverno chega as plagas mais longínquas da América do Sul, antecipando as nossas noites, trazendo consigo temperaturas mais amenas, diferenciando e muito, o calor do verão tropical, obrigando o uso dos capotes mais longos, fechados,das roupas em tons gris, dos parapluie abrigando-nos dos intensos e grossos pingos de chuva. A cidade, alegre e multicolorida durante o verão, com toda a sua gente nas ruas, abrigava-se agora, no recesso dos lares benditos, dos bares fumarentos, nos diversos templos que amparava toda a gente, que envolta nos seus grossos e pesados casacos, adentrava-lhes trêmulos, ansiando por uma palavra amiga, ou quem sabe, um gole de ânimo, carinho e esperança no futuro. Aquela crise varrera como um tufão todo o país, estendendo-se inicialmente, por todo um continente, e logo após, como em um tufão, o planeta agitava-se numa convulsão de uma hora para outra, quando, sem pensar, nem mesmo crer, mudanças profundas, efetivaram-se. Naquele centro financeiro tão próspero, onde edifícios teimavam em elevar-se direção ao céu plúmbeo de marfim, nas ruas, já não mais havia o intenso tráfego de pessoas e automóveis, ao contrário, tudo silencioso, incrivelmente silencioso, inquietantemente silencioso. Um silêncio tão pesado e inquisidor, que nos levava constantemente a pergunta que tantas vezes e em épocas tão variadas nos fizemos: “por quê ?”. O céu, carregado de nuvens plúmbeas, que insistiam em desabar a qualquer momento por sobre a cidade, constrangendo ainda mais os homens e mulheres e crianças que de espaço em espaço ocupavam as marquises abandonadas do centro financeiro; ao entardecer,quando o frio ameaçava intensificar-se, tornando mais longa a noite, aqui e ali começavam a acender pequenas fogueiras de qualquer material que pudesse se tornasse combustível : pedaços de mesas e cadeiras, galhos das poucas árvores existentes, papéis que já haviam cumprido a sua função, papelões, livros...e em volta da fogueira, uniam-se todos aqueles que, de uma forma ou de outra, irmanavam naquele destino. Silenciosos, esfregavam as mãos uns nas outras e aconchegavam-se mais buscando não deixar escapar o calor do fogo e o calor dos corpos. Inicialmente vez por outra o vento varria a extensão de toda aquela avenida levantando copos e pratos descartáveis, balançando os galhos das árvores, batendo nas vidraças, abrindo e fechando muitas portas, cerrando janelas, rangendo portões que entreabertos deixavam-nos perceber a vida que havia se esvaído, logo ao chegar da crise. Muitos que ali trabalhavam, morreram por não mais saber o que fazer, muitos escolheram a morte, outros tantos, não quiseram escolher nem uma cousa nem outra, simplesmente, iam e voltavam àquele local que fora, durante tantos e tantos anos, o seu ambiente de trabalho. Ao abater-se a crise, sobre o grande centro financeiro, tantos que, durante tanto tempo fizeram tanto, viram ruir o edifício no qual, durante toda a sua vida, pensara construir um alicerce seguro e inabalável. Aos poucos, a chuva prometida durante todo o dia, intensificara-se, caindo sobre o centro financeiro, pesadas bátegas d’água, as pequenas poças iniciais, transformaram-se em enxurradas, levando o que havia pela frente, lavando as ruas, as calçadas, as mãos, os pés, misturando-se, as lágrimas, que teimavam escorrer pelas faces cansadas do homem calejado de tanta briga. E ainda que tantos houvessem embaixo daquelas marquises, todos procuravam abrigar-se da chuva e do frio, agora intenso, silenciosos, e um ou outro, atrevia-se a murmurar: que chuva, meu Deus, que chuva! Lá por dentro, estariam pois a interrogar-se o motivo de tamanha derrocada restava-lhes somente, aquiescer intimamente com os seus botões, pois,por mais cruel que nos pareça, contra fatos, não há argumentos. Um carro ou outro passava em carreira pela vasta alameda, luxuoso que fora, cercada de grandes edifícios, calçadas enfeitadas por grandes jarros de plantas, piso de mármore, fios elétricos subterrâneos, e nas paredes de cada um daqueles prédios, muitas câmeras ainda preocupadas e vigilantes, intrometendo-se ainda que por alguns segundos na vida de cada passante, a escoimar seus passos e seus caminhos. Os galhos secos das árvores que margeavam a alameda, erguiam-se secos e estridentes em direção ao nada. O cenário vivido expunha um desanimador presente e um futuro incerto. 
                   De repente, apontava do outro lado, com o seu som estridente um carro do corpo de bombeiros, que pensando em abrir caminho, deixou em último volume a sua potência de som, ledo esforço, não precisava tanto, visto que, as ruas estavam vazias de autos e de gente, e o silêncio estrepitoso se fazia ouvir nas ruas e parques e praças e alamedas da cidade, tal qual aquelas, onde só murmúrios eram pronunciados por aqueles que, indômitos, enfrentavam a chuva inclemente e o frio intenso, na esperança de encontrar um cantinho mais aquecido para abrigar-se. Todos eles, os homens, barbas grandes, por fazer, toucas ninjas e barretes a cobrir-lhes, pesadas botas e esportivos tênis, olhos perdidos na imensidão do infinito, sem que eles mesmos tenham ciência do que se passa, ou tenham perdido consciência dos seus passados De quando em quando o vento vadio assoma pela alameda, intensificando a força dos pingos grossos de chuva de quando em quando, as gotas de água, misturam-se, sem cerimônias, no olhar daquele homem, difícil dizer quando a água da chuva, quando as lágrimas que correm e escorrem sem parar no rosto daquele homem que treme e treme . Já vai longe o carro de bombeiros e o seu som estridente, de certo, anuncia a todos os que permanecem que está a postos para prestar ajuda. É noite já. Já faz algum tempo que aquele carro vermelho, com uma sirene muito forte, passou...desenhando no asfalto marcas de pneu, logo,logo apagadas pela chuva que, definhou, caindo e gotículas miúdas, trazendo um frio mundano, enternecendo àqueles que teimavam em conservar acesas as suas fogueirinhas de papel. Ver crepitar o fogo, que lhes traz calor e lhes permite a vida, dessa forma, permitem-se mais um dia na dura escalada da sobrevivência. Perdeu-se a noção das horas, ainda que a chuva perdure em gotas miúdas, o silencio desaba aterrador, não há o que falar, as palavras talvez, todas ditas um dia, apresentam-se agora gastas, e para nada mais servem, e nada mais há que dizer, talvez sim, íntimos monólogos sombrios que teimam em recitar-lhes nas mentes já tão fatigadas, as palavras inúteis que constroem o edifício das ideologias. Ilusão. Tudo ilusão.  Aquelas corridas desenfreadas atrás do tempo, o bordão que embora já muito gasto insiste em resistir e que, como no conto de Alice, sempre lhes recitava: não há tempo, não há tempo, não há tempo. Depois daquele redemoinho imensurável, quando todos os papéis voaram janela abaixo, em se tratando de prédios imensos e com muitos andares, quando todas as carteiras foram limpas de pastas, de taxas, de processos, de ofícios e as cadeiras arrancadas ferozmente dos seus lugares, quando os gritos de alegria foram substituídos pelos gritos de pavor e desespero,quando todos os sonhos evaporaram-se na densa nuvem que encobria o céu daquele lugar, quando todo um sistema conhecido e aparentemente seguro, entrou em pane, caiu e foi declarado falido. Por isso que agora, ali, naquela avenida, tantos que dele participaram atônitos, buscam respostas e a pergunta que lhes povoa a mente : por que ? Sem encontrá -las, seguem caminhando pela alameda, repetindo um padrão, como se fosse um leve e velho exercício físico, que costumavam fazer , desde há muito, numa trajetória de vai e vem, vem e vai; recolhem apáticos as muitas lembranças que lhes sobram, naquele imenso terreno de vazio, condenados talvez ao esquecimento. De repente, um desses velhos bonecos, do velho Noel, irrompe na calçada, quebrando o silencio soturno da noite. Alegremente o velho Noel, bate o seu tambor branco fitas verdes e douradas chamando a atenção dos que encostados ou deitados sobre a marquise dos velhos prédios, relutam em conciliar o sono, é Natal, é Natal, é Natal, Natal....
       Alguém pigarreia, vir-se para o outro lado, tenta dormir,mas, alegremente o velho Noel,continua a sua canção;
- Desliga isso ai, mané... gritou alguém impaciente. ….....................
Nenhuma resposta lhe foi dada.
- Desliga rapaz...é hora de dormir....

        Encantado com o batuque o homem que trouxe o boneco em suas coisas e o ligou, aquela hora da noite simplesmente ignorou o pedido ou a ordem; talvez não tivesse nem ouvido, fechado que estava no seu mundo. E o frio tornou-se mais frio, intenso até, levando a tremer aquelas criaturas, expostas, assim a ação do tempo. Alguns dormiam, outros somente dormitavam e outros ainda com as duas mãos embaixo da cabeça, tentavam dormir e buscavam ignorar o barulho lá fora. Até que, a alegre canção que repetiu-se várias vezes, fazendo-se ecoar pela alameda, foi perdendo a força e a graça, cada vez mais o som, ia ficando mais baixo, cada vez mais, o velho Noel, caminhava com menos vigor, até que, em determinado momento, parou de vez, permitindo que o silêncio da alameda fosse enfim respeitado. O respirar de cada um e o murmúrio da chuva que caia fininha, eram os únicos sons que se ouvia. Vez por outra, o crepitar de uma fogueirinha e a luz bruxuleante que dela emanava, movimentavam o cenário, que desenhava-se apático e desesperançoso. Respiravam. E as suas respirações movimentava-lhes as fibras do corpo, e penetravam nos recantos mais escondidos de suas almas, com ela, os seus sonhos e novas e velhas preocupações. Vencidos enfim, pelo sono e pelo cansaço, adormeciam, esperando firmemente, que o dia seguinte lhes trouxesse maiores esperanças e perspectivas de dias melhores. Amanheceu. Acordaram com os primeiros raios de sol, e com breves toques de uma buzina que lhes chamava para a primeira refeição da manhã com pão, café e leite, adornado com palavras amigas de um bom dia e esperanças de dias melhores, mas, fatalmente, os dias pareciam suceder-se iguais e sem perspectivas, até quando ?, perguntavam-se. E assim dessa forma, permaneciam um dia após outro, uma noite após outra. Ainda há dois anos, aquelas ruas fervilhavam de gente na febre consumista que caracterizou os tempos modernos, a distância no tempo não era assim tão grande, no entanto, parece que tudo aquilo, acontecera há muito tempo. O bonequinho do velho Noel que alegrara a noite, encontrava-se agora abandonado no meio fio, cara virada para o asfalto,o gorro vermelho distante, do outro lado, o velho Noel agora, silente, desprezado, entregue a própria sorte.

- Ei tudo bem ? O silencio respondeu. 
  Insistiu então.
- Ei tudo bem ? Instou ao tempo em que avançava meio trôpego, meio cocho, trazendo nos braços algumas roupas, nos gestos largos a esperança de uma companhia, parecia que vinha de longe, talvez, trouxesse boas novas. Enquanto avançava, ia percebendo as pessoas que encostadas a parede ou sentadas ou ainda deitadas, respiravam solenemente, enquanto faziam alguns pequenos movimentos ou mesmo, movimento algum, e apenas esperavam.
- Ei você estava ai, sempre esteve e não me respondeu hein ? Porque não me respondeu rapaz ?
- ….....................
- Ergam-se!
- Não sois máquinas, homens é que sois....não sois máquinas.....ergas os olhos e vedes, o sol vai rompendo as nuvens......
        
        Nenhuma resposta.

       Arrastando-se desengonçado e semi lúcido, braços esquerdo para o alto e dedo indicador em riste: não sois máquinas, homens é que sois, ia avançando e descobrindo os outros, que distantes não o percebiam,afinal, no ostracismo que os alcançava, tornavam-se parte da paisagem, tal artistas de rua, a imitar estátuas vivas de carne e sangue, ou ainda que próximos, não queriam percebê-lo. Trôpego pensou em retornar, voltar, para algum lugar ou algo, que intimamente sabia, jamais deveria ter saído. De paletó, colete, camisa, gravata, cartola, mais parecia Carlitos que ressurgia no seu surrado paletó, maior do que ele, grandes sapatos, imensos quase, que o levaram para aquele lugar . As árvores que circundavam aquela alameda, antes alegres e verdejantes, esticavam para o alto os seus galhos secos e retorcidos, tristemente solitárias , ainda que, vez por outra um pássaro triste lhe pousasse nos galhos, estufando o peito e lançando ao vento e a todo a alameda silenciosa, o seu canto de tristeza:bem te vi, bem te vi, bem te vi.
               De cócoras, os homens e mulheres que ali estavam, viam dali, o mundo a girar e girar, procurando um novo caminho, buscando uma nova saída, enquanto que a chuva caia, em cadência bem compassada, e o frio tornava-se mais presente, fogueirinhas de papel eram acesas com rascunhos de contas, relatórios e projetos, aquecendo os que permaneciam próximos.

       O homem a la Carlitos já tinha ultrapassado a rua principal da alameda, sabe-se lá para onde, tão desajeitado , seguiria.
          No grupo que tinha a luz da fogueirinha, alguém falou:
"Ergamo-nos, não somos máquinas, homens é o que somos... e quem lhe estava próximo, repetiu: Ergamo-nos, não somos máquinas, homens é o que somos...
E mais adiante, os vizinhos de marquise repetiram pausadamente:
- Ergamo-nos. Não somos máquinas, somos homens....
E outro:
- Não somos máquinas...disse um Ergamo-nos...somos homens....
E alguém levantou-se e foi para o meio da rua e gritou, com um grito bem alto, a plenos pulmões:
- Ergamo-nos, somos homens...somos homens.....
Mais três vieram juntar-se a ele:
- Somos homens.....
E depois mais cinco pessoas, juntaram-se ao primeiro grupo:
- Não somos máquinas, somos homens...ergamo-nos!

           E os outros que estavam mais distantes, levantaram-se para saber o que acontecia, a alameda sempre tão silenciosa áquela hora via-se perturbada por aquele vozerio: "Homens é que somos, homens, homens, homens é que somos.... "

        Desceram de suas marquises, juntaram-se aos outros, num instante, quem estava mais distante, aproximou-se. E o que primeiro refletiu, e o que primeiro acordou, tomando a dianteiro, dirigindo-se a todos lhes disse: “ Há quanto tempo cá estamos,cabeças baixas, vazios, derrotados, acabados; homens é o que somos. Começar de novo, há tanto tempo, tanto tempo atrás, que o próprio tempo esqueceu, quando tudo começou, tantas foram as dificuldades, tamanhos os empecilhos, improváveis as certezas de vitórias, e no entanto, cá estamos, em uma aldeia que é o mundo , não há chance de ficarmos parados, recomeçar é a nova ordem. Recomeçar já mais calejados, mais experientes, buscando errar menos, aprendendo com os nossos erros, é certo, nos ergamos, nos levantemos, para começar de novo, reconstruirmos “, afinal, somos homens, podemos reconstruir, e temos o privilégio de poder recomeçar.”
             Como um só homem, organizaram-se em equipes e puseram-se em ação, buscaram ajudar os mais fragilizados, recolher o que estava disperso, limpar a sujeira que se apresentava , incentivar os que estavam desacreditados, iluminar com vida nova a velha alameda. Ao final da bela faxina, juntaram-se ainda uma vez mais, em volta da fogueirinha, estava frio. Agora todos falavam,todos tinham planos, objetivos, metas a serem seguidas.
- “....Pois é quando eu precisar você me ajuda e quando você precisar eu te ajudo.....
- ” sim, ficamos mais fortes.... 

      O sol irrompeu por entre as nuvens e aquelas pessoas,foram,cada um deles traçou a sua meta, sorrindo, felizes e até cantarolando, recolheram o pouco do que lhes sobrou, e caminharam, cada um o seu caminho de novas descobertas e concretizações. Erguei-vos, disse ele, homens é que sois. No inicio repetiam intimamente, devagarzinho, depois falavam baixinho, tentando convencer-se, depois falavam alto, alto para que todos ouvissem e repetissem e  dessa forma convencidos, tivessem certeza dessa verdade.