De lugar algum
Nos dois primeiros meses Lucas entrava sempre no último vagão. Seguia a lógica de que se caso houvesse uma colisão ou descarrilamento, as chances de sobreviver estando nos primeiros vagões seriam mínimas. Dois anos depois Lucas já havia mapeado todos os vagões, provado todos os assentos em diversas condições climáticas e percebeu alguns padrões. Todos os dias ele posicionava no ponto exato em que deveria ficar para que quando o trem estacionasse a porta abrisse exatamente na sua frente e ele pudesse entrar e assentar-se no banco que ficava ao final do primeiro vagão, encostado na divisória do mesmo. Ele sentava já com os fones nos ouvidos e tirava um livro da maleta preta. Lia algumas páginas e quando a visão embaralhava ele fechava o livro, encostava-se na divisória e dormia. Com o passar do tempo a necessidade de conforto sobrepõe qualquer estatística negativa.
Naquele final de dia abafado de final de primavera, havia duas mulheres na plataforma paradas no lugar onde Lucas aguardava o trem chegar. Ele odiava quando isso acontecia, pois as pessoas não davam o devido valor ao local. Quando aporta abria na frente deles eles achavam que era um golpe de sorte, mas Lucas sabia que não era, pois aquele lugar fazia parte de um padrão e era por direito dele por tê-lo descoberto. Lucas ficou atrás das mulheres, pois ele tinha um plano B. Se elas sentassem no seu lugar haveria ainda o lugar da frente que tinha quase as mesmas condições que o seu preferido. O trem chegou a porta abriu, as mulheres entraram lado a lado, elas foram para um lado e para o outro indecisas. A massa humana atrás deles adentrou e Lucas viu o plano A e B irem por água abaixo. Acabou sentado espremido entre uma senhora gorda e um segurança. Abriu a maleta para pegar o livro, não estava lá. Lembrou que havia deixado em cima de sua mesa, ao lado dos fones no seu trabalho. Desfaleceu. Na estação seguinte o trem lotou. Lucas sentia-se exposto. Estava sendo bombardeado por coisas que sempre estiveram à sua volta e nunca havia percebido. Via as pessoas espremidas tropeçando umas nas outras, ouvia sobre o crime hediondo da noite anterior, sobre quem teria sido o assassino da novela, sobre a modelo grávida sobre o técnico da seleção, como seria bom se aquele dia fosse sexta-feira, o último filme de heróis, a briga com o chefe, com o colega, com os pais, sobre as gostosas que ficam na porta do trem mas não conseguem entrar. Via as faces sérias, arrogantes, nulas e sorridentes, gargalhadas em demasia, suor em demasia, oxigênio escasso. Crianças chorando crianças gritando. Quer um chiclé ? Pode me dar licença? Que estação é essa? Será que vai chover?
Lucas amaldiçoava o momento de distração em que esqueceu o livro e os fones. O suor fugia de suas têmporas bochecha abaixo. Os pés dilatavam seu sapato. Escorou a cabeça para trás com os olhos fechados, concentrou todas as suas forças para chutar sua mente para longe daquele torpor, e conseguiu. Sua mente voou alto por sobre as nuvens e ele pousou como espectador de uma orquestra sinfônica em uma passagem de som que lembrava um Richard Wagner em um dia de fúria. Os violinos gritavam dramáticos e eram respondidos pelos arpejos furiosos dos cellos. Lucas sentia-se tocado por cada nota executada. Envergonhou-se por estar chorando, foi ai que começou a chover. Os músicos fecharam suas partituras e foram embora protegendo seus instrumentos, ele olhou para os lados e viu a platéia embarcando em trens que estacionavam em ambos os lados do auditório, ele não compreendia nada do que acontecia desejou estar em casa, então ergueu as mãos e agarrou a primeira mão que passou acima de sua cabeça. Foi puxado para a bordo do cesto de um dos balões que alçavam vôo do meio das cadeiras. O mundo estava ruindo, mudando a cada segundo. Era demais para sua concepção metódica e organizada de ver a vida.
- Abandonar navio! – gritou um dos homens que estavam dentro do cesto quando o balão bateu no teto e começou a murchar. Lucas pulou. Deu por si em uma vertiginosa queda livre, em meio a diversas nuvens brancas e gordas como se gigantescas ovelhas de algodão estivessem pastando o azul do céu. Ele fechou os olhos e entregou-se a mistura de paz e vertigem em meio ao branco. Ele ouvia ao fundo os violinos ressonando novamente e logo não havia mais vertigem e tudo era somente paz.
Lucas foi abrindo os olhos lentamente, alguns cílios estavam grudados. Dormira tanto a ponto de criar remelas? Estava com as pernas esticadas e com uma parte das costas ainda no escoro do banco do trem. Esfregou a cara com as mãos e demorou a compreender que o vagão estava vazio e parado.
- Dormi e fui para no fim da linha - ele pensou. O único barulho que ouvia era de algo familiar, mas ele não conseguia distinguir. A luminosidade era natural e vinha da rua como uma manhã prestes a acordar. Estralou o pescoço espreguiçando-se e esticando os braços. Postou-se em pé e não conseguiu distinguir o que havia do lado de fora. Juntou sua maleta e dirigiu-se à porta semi aberta. Ele estava prestes a descobrir o cheiro daquela brisa fresca que lambeu seu rosto quando a luminosidade ofuscou seus olhos ainda sonolentos. Lucas passou pela porta e seus pés não encontraram o chão, caiu de joelhos e cotovelos no chão branco e fofo. Era areia fina e branca. Ainda de joelhos seus olhos viam apenas areia à sua frente. Dunas e dunas preenchiam o horizonte. Lucas limpou-se como pode, caminhou até o primeiro vagão e olhava nas janelas e portas entreabertas. Não havia ninguém, nem mesmo na cabine do operador. Foi até a frente do primeiro vagão e viu os trilhos sendo encobertos por uma pequena duna. Fim da linha. Então ele passou para o outro lado dos trilhos e sua boca abriu-se lentamente. Descobriu a brisa e o cheiro. Ele estava à beira mar sob um céu cinzento sem ovelhas gigantes de algodão. Apenas um tapete cinza encontrando o mar lá no horizonte. Estaria ainda dormindo? Mais um sonho maluco de final de tarde? Ele caminhou pela praia deserta em direção ao mar que vinha sem pressa em pequenas ondas que deixavam a areia com cara de pedra maciça quando as águas recuavam. Ele avançou até que seus pés foram encobertos, a água era gelada como um piso de banheiro em uma manhã de inverno com os pés descalços. Sua maleta foi ao chão. Ele continuou caminhando lentamente. Não seria ainda um sonho. Não se pode sentir odores, você não tem noção de temperatura em sonhos ou pode? O gelo dos pés subiu pelas canelas. Sua maleta passou boiando por ele. – Não é um sonho. – ele repetia para si. Beliscou-se e sentiu dor. Ainda assim não havia explicação. O gelo alcançou os joelhos. Ele parou. O frio tornou-se reconfortante. Lembrou-se que não via o mar há anos. – Isso deveria ser proibido - ele sussurrou com lábios sem voz - tanto tempo sem ver o mar.
Soou um apito, as portas do trem se fecharam e o trem voltou pelos trilhos. Deveria ter alguém na ultima cabine, o operador certamente. O trem não iria andar por ai sozinho. Iria? O gelo alcançou-lhe as coxas. Ele recuou. Lucas ainda estava digerindo aquela situação surreal em que se encontrava. A maleta sumira em meio às ondas, assim como o barulho e a visão do trem. Ele começou a caminhar pela praia ainda com água nas canelas. Sentia que a cada minuto naquele gelo a sua vida mudava. Ou simplesmente aquele não era apenas mais um dia em sua vida e sim um “divisor de águas”. Riu com a ironia de seu pensamento. Colocou a mão nos bolsos e encarou os trilhos mais uma vez. Se quisesse voltar para casa era só segui-los de volta. Mas voltar para casa era algo que ele não queria pensar. Pelo menos não naquele momento.