O suicídio de Beatriz

Meu nome é Beatriz. Novamente não estou bem, por isso escrevo. Registro pedaços de uma vida. Estou na velha cabana do meu pai. Não é nada bonita. Na verdade é bem rústica. Ele a construiu inspirado nas casas de alguns colonos americanos. Uma vez fez uma viagem à Montana e viu algumas encravadas na floresta. Quando voltou, escolheu esse pequeno trecho de serra e a mandou levantar afastada da cidade. Quando menina muitas vezes trazia-me. Minha mãe não gostava, pois sempre foi adversa à Natureza.

Essa situação gerava um forte antagonismo e ajudou no fim. Hoje, quem vem pra cá sou eu. Geralmente chego aos fins de semana. Se não fosse pela maldita escola o isolamento poderia ser total. Felizmente esse é o último ano do suplício. Há quem deseje que eu vá pra faculdade, mas não vou. Para quê? Aqui tenho tudo o que preciso. Muito bom não precisar falar.As pessoas não entendem. Naturalmente que não podem entender. São muito idiotas para isso. Na escola há todo o bando de maritacas. Aquele tumulto de vozes enlouquecedor.

Acho que a questão não são as palavras em si, o que incomoda é o vazio. Todas as fisionomias sorrindo numa alegria postiça, por isso me calo. Cada vez mais me julgam estranha, mas não se apartam de mim. Sempre aqueles braços querendo sufocar numa insistência cretina na busca pela amizade. Culpa dessa minha cara. Por Deus, não tenho vaidade! Sou seca na alma. Outro dia, na televisão, apareceu uma mulher desfigurada. O marido com ciúmes imergiu o belo rosto da esposa numa banheira fervente. A face cozinhou e o que sobrou foi uma expressão hedionda. Ao meu redor, todos se compadeceram. Eu não. O que senti foi apenas inveja. Vontade imensa de estar no lugar da mulher e ver minha face transfigurada num pedaço de carne repulsivo.

Às vezes tenho vontade de pegar o canivete e fazer vários talhos. Inverno passado, ao cortar meu pulsos não senti receio algum. Fiz os cortes com meu canivete e fiquei na banheira, nua. As luzes apagadas. Somente a iluminação da Lua entrando pela ampla janela. Enquanto esperava o fim, muitos pensamentos. Sou uma refratária, fiquei esperando à morte, rija. Na banheira houve a mistura. Cada vez mais a água dando lugar ao meu sangue. Sempre gostei do meu sangue. Era uma fascinação vê-lo fluindo, quente, no abandono das minhas veias. Quando esticava o braço para apanhar a garrafa de vinho, também o chão tingia-se. O vinho excitava as idéias. Servia de ponte ao passado. De repente, do fundo tinto da banheira surgia a lembrança do meu pai morto. Os miolos grudados na porta do quarto e a cabeça infantilmente recostada na sua mesa. Mas antes disso houve o estampido. O meu eu menina de oito anos não entendeu o significado do barulho. Foi correndo até o quarto e encontrou o corpo. Mesmo assim não compreendeu. Ficou observando. Batidas na porta do banheiro perturbaram essas minhas lembranças.Nesse momento apaguei.

Infelizmente não morri. Situação muito triste para uma suicida. Aliás, sempre gostei dos suicidas. Fascinante alguém abandonar a própria vida antes do final. Que se ganha em viver muitos anos? Para quê? Por isso gosto dos romanos. De Pórcia, com todos aqueles carvões quentes na garganta. Simplesmente uma mulher admirável! E o que dizer de Virgínia Woolf em seu salto fantástico? Encheu os bolsos de pedra e submergiu. Quatorze dias depois era o corpo de uma afogada. Terminaram as alucinações. As minhas continuam. Mesmo agora em meio a esta escrita começam querer aflorar. É preciso um esforço admirável para poder espantá-las, mas são espectros insistentes. Tenho de parar um momento e fixar a atenção num ponto qualquer da cabana. Uns dois minutos sem fazer esforço algum com a cabeça. Quando termino, melhoro um pouco e novamente pego meu lápis.

Hoje é domingo, minha mãe deve estar em casa, soberana, recebendo os convidados. Haverá, sempre há, o tour pelo acervo de quadros. Rostos extasiados se deslumbrarão com preciosidades. Virão estampados pelo sorriso estúpido de ocasião. Todos felizes! Todos amigos! Todos idiotas! Já faz algum tempo recuso-me a participar da comediazinha. Até os treze anos houve a imposição, depois disso perceberam, sou perigosa! Por fim, minha ausência passou até a ser celebrada. Não mais teriam que se constranger com a acusação dos meus olhos.

Na verdade, sou tida como deplorável. Minha mãe sempre generosa nos epítetos encontrou um bom pra mim. Diz que sou subterrânea. Tem razão, pois é assim mesmo. Seria por causa do suicídio de Papai, penso muitas vezes. Quantas horas debruçada sobre livros de psicologia, mas em vão! As explicações científicas não ajudam nada. São muito teóricas. Não se enquadram a mim. Por isso, prefiro ficar autopsiando-me, como faço agora. Só que cansa. Chega uma hora que cansa. É aí que as crises começam. Chegam devagar. Por indícios. Depois engolem tudo. Num turbilhão. Esse turbilhão são meus pensamentos, que giram na cabeça como um tornado. Ainda assim são suportáveis, mas apenas quando estou só. No entanto, a insistência para me constranger a mudar cresce, viscosa, a cada dia. Mas o que querem afinal? Não percebem? Como vou conseguir viver entre eles?

Essa cidade.... Assassina. Sim, matou meu pai. São todos cúmplices. Todos conheciam e ficaram platéia, assistindo. Depois, vieram pungidos, consolando. Minha mãe adorou tudo. Esmerou-se no grande evento. Um pouco antes do enterro com que capricho escolheu minha roupa! Quando impaciente tentei descer para ficar perto do caixão fui repreendida. Chamou-me desleixada. Cretina. Seus olhos estavam áridos. Somente no cemitério, um pouco antes da descida do caixão, pareceu que chorava.

Uma linda representação. Não perdeu a chance. Ao tentar me abraçar, fugi. Agarrou um dos meus braços, mas tive forças e me desvencilhei. Aqueles dedos repugnavam. Só fui encontrada dois dias depois. Estava aqui, sentada no mesmo lugar onde estou agora. Não comi. Não bebi. Não fiz nada. Fiquei como uma coruja extática velando um quadro do meu pai. Por fim, levaram-me. Deixei. Vozes diziam muito, mas não quis ouvir. Duas semanas sem abrir a boca. Veio daí, talvez, a minha ojeriza pelas palavras ditas. Em comparação com esses momentos minha vida não está tão ruim. Melhorou bastante, hoje somente é péssima, naquela época foi miserável!

Confusa. Dezessete anos e não sei o que fazer. Seria tão fácil se eu fosse como as minhas amigas da escola. Não consigo. Gostaria de ser homem. Entrar para o exército. Talvez uma guerra. A morte, a mutilação, enfim, a solidão de quem sabe que pode morrer. Qualquer coisa é melhor do que isso. Meia noite agora. Tenho ainda seis horas para decidir. Tomada uma decisão não posso falhar. Do lado desses meus papeís, muitas cartas. Encontrei um dia desses quando procurava algumas fotos. Por elas é possível a recomposição de quem foi meu pai. Fico aflita, pois parecem várias pessoas. Ainda assim, uma qualidade prevalece, a bondade. Infelizmente não serviu pra muita coisa.

Uma pena ter sido criança. No que me ajudou? Aproveitei? Não, não aproveitei. E fui incapaz de evitar o naufrágio. Ele estava afogando, não há dúvida. Era um afogamento longo, por etapas. Por doses. Terminou daquele jeito, aquela sujeira. Um caixão lacrado. Seria tão bom observar novamente a fisionomia dos que já morreram. Alguém terá algum interesse em observar a minha? Acho que não. O que haverá sim é o grande alívio. Discutirão lineamentos da minha personalidade confusa. Serão todos psicólogos e darão a sentença, magnânimos. Fodam-se. Nem sei porque pensar neles. Idiotice. Muito estranho como o tempo relativiza quando escrevemos. É o que acontece agora. Três da manhã. Nas paredes, não mais as espingardas de caça. As facas também faltam. Nem sei como permitiram que eu voltasse aqui. Na verdade não tiveram escolha.

No entanto, para alívio de consciência retiraram tudo. Restaram somente talheres e pratinhos de plástico. Utensílios de festa de aniversário de crianças. No meu de oito anos era o que havia. Não foi feito aqui e sim na cidade, na outra casa. Vieram crianças das melhores famílias. Havia a mesa, o bolo, os docinhos, a parafernália toda, enfim. Minha mãe era quem recebia. Sempre tinha a palavra certa, de ocasião. Fazia questão de me ter ao lado dela, queria exibir. Só que eu não gostava daquela gente. Queria o meu pai, procurava-o com os olhos, tentava, na confusão daquelas vozes idiotas, identificar a dele. Mas não conseguia. Também isso era difícil, pois ele não falava. Apenas comigo. Só consegui enxergá-lo quando me desvencilhei das mãos pegajosas. Estava numa mesa, segregado. A garrafa de uísque, companheira, junto. O cotovelo apoiado na mesa segurava uma cabeça pensante. A cabeça que daí a alguns dias estaria esmigalhada. Naquele momento ainda pensava. As pessoas ao redor não incomodavam. Tinham medo. A verve era poderosa! Só que estava muda. Ao ver-me não me reconheceu imediatamente, somente depois de alguns segundos percebeu que eu era a filha. Abraçou-me. Não me disse nada. Não deu tempo. Minha mãe chegou com duas amigas e astuciosamente levou-me para junto das outras crianças. Ele então ficou lá. Um solitário, como diziam. Mas não era só isso não! Havia uma profundidade intensa. Também ele era subterrâneo e pessoas assim não têm chance. Por mais que tentem, acabam submergindo. Submergidas. Esse mundo é dos que não sentem. Por isso são fortes. Não se quebram. Ficam até o final. Engolem tudo.

Quatro e meia da manhã agora. A decisão foi tomada. Estou feliz. Então comemoro. Escolhi como lenitivo mental o vinho. In vinum veritas. Já bebi três copos. O canivete jaz na mesa. Manchado. Dessa vez não haverá interrupção. Apenas o braço direito foi poupado. O esquerdo está fluindo bem. Também fiz dois cortes nos meus tendões. Embaixo de mim forma-se uma lagoa. Uma lagoa de sangue. Sim. Estou dentro dela. Daqui algumas horas afogarei dentro de mim mesma. Do meu próprio sangue. Por Deus, estou feliz! Por que demorei tanto? Enquanto for possível, vou escrevendo. Vaidosamente quero os últimos instantes dessa vida registrada. Tenho de tomar cuidado para os papéis não mancharem. Os últimos papéis de uma suicida. Comigo morre a semente de meu pai. Essa terra é muito árida para que pudesse ter germinado. Não merece nada dele! Não me merece! Gostaria do meu corpo insepulto, mas sei que não ficará. Não faltará nada. Ao contrário do de meu pai, meu caixão estará aberto. Todos poderão me ver. Sentir meu rosto. Novamente lembro que os dedos repugnam.

Encostarão em mim? Não há dúvida. Serei um cadáver não poderei impedir. Mesmo inerte me acharão linda. Essa sempre foi minha maldição em vida não haveria de ser diferente fora dela. Apenas, se tivessem a curiosidade de abrir o caixão alguns dias depois e me vissem em decomposição teriam uma real idéia como, de fato, sou por dentro, como é a minha alma. Lá de fora percebo a algazarra dos pássaros. É o dia revivendo. Veio despedir-se de mim. Na verdade, divago. Estou tonta já. As letras fogem. A quantidade de sangue é imensa. Dessa vez não foi diluída pela água e ninguém apareceu. Mas é o fim. Não consigo mais....

Gabriel Desaix