Raw Lay

Não sabia se fazia com cuspe ou água. Sempre errava na medida da segunda e dependendo do humor tinha nojo do primeiro. Aspirar estava fora de cogitação – Deus o livre de ficar fungando! Umas contrações o fizeram correr até a privada. Ainda estava com a agulha na mão quando seu esfíncter parou a árdua e fedorenta tarefa; utilizou-a – a agulha - para arrancar alguns pêlos encravados da região pubiana que haviam formado uns abscessos que pinicavam de maneira infernal. O som entrava em seus ouvidos de uma maneira agradável, doce, inebriante:

“If the sky that we look upon

Should tumble and fall”

Dava um pulinho ou outro com alguma cutucada errada; ficou durante uns bons dez minutos em tal missão; a música, no repeat já há umas boas duas horas; um filete de sangue escorria rente a seus testículos.

“I won't cry, I won't cry

No I won't shed a tear”

Era por essa e por outras – livros, joguinhos de celular, composição química de shampoo e pasta de dentes – que vivia com o meio da bunda coçando, com hemorróidas doloridas e inflamadas saltando fora.

Ficou de pé, e foi se limpando e perdendo a paciência: parecia se sujar mais a cada pedaço de papel que passava naquela delicada região. Depois de intercalar dois molhados, dois secos, dois molhados, dois secos, enfim conseguiu ficar limpo; ergueu as calças e saiu – sem lavar as mãos.

Depositou o pozinho branco numa tampa de refrigerante – de nome análogo ao do pó -, cuspiu, ergueu-a na altura dos olhos, mexeu seu conteúdo com a agulha e, pela janela do banheiro, deu uma olhada na rua – uma dúzia de buzinas de repente subiram os oito andares e invadiram seus tímpanos.

Trocou de música. Voltou à outra; a que tinha tocado nas outras duas horas anteriores – nas duas horas posteriores ao término de um relacionamento de anos.

“When you walk

Through a storm

Hold your head, up high

And don't be afraid, of the dark”

Encaixou a agulha na seringa; ponta da agulha na papa branca; puxou o êmbolo e tudo ficou branquinho por dentro da seringa.

A nova música era deliciosa de se ouvir: mágica, contagiante, forte.

“Walk on, through the wind

Walk on, through the rain

Though your dreams be tossed

And blown”

Lançou um olhar furtivo para um chumaço de algodão, poeticamente vizinho de uma embalagem de álcool. Deu de ombros. Com o indicador e o médio da mão direita, sapecou as veias do antebraço esquerdo com umas palmadinhas.

“Walk on, walk on”

Sentou-se na ponta do sofá, fez mira na veia saltada, forçou a incursão da agulha, pressionou o êmbolo e deixou-se escorrer, delirando de dor.

“With hope, in your heart”

Esticou o braço até a mesinha de centro e pegou um porta-retrato – que estava com o vidro protetor estilhaçado, porém, com a foto intacta – e olhou-o por um longo momento.

“And you'll never walk alone”

As lágrimas começaram a escorrer enquanto ele ria-se sem saber o porquê; o barulho das sirenes infernais abafando seu choro, sua música.

“You'll never walk alone”.

Rolou pro chão, num baque surdo; deu com a costela numa bola de sinuca, mas ignorou a dor. Ficou em posição fetal, largado num tapete prenhe de imundícies variadas. Abraçou o porta-retrato e esvaiu-se em lágrimas, aproveitando o que de melhor a bancarrota tem a oferecer.

“Alone”, ganiu em uníssono com a caixa de som.

26/09/2011 – 17h31m

Stand By Me – Baron (Feat. Lemmy Kilmister e Dave Lombardo)

Gerry and the Pacemakers - You'll Never Walk Alone

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 26/09/2011
Reeditado em 26/09/2011
Código do texto: T3242344
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.