REALIDADE SURREAL

Não sei o que pensar. Toda vez que olho para aquele lugar me sinto extasiado. É um encontro de sentimentos e emoções indescritíveis. O local é fora de sério. Anormal. Sinto que algo lá dentro não está nos seus ajustes. A curiosidade é mais forte e me sufoca. E isso tudo vem de um casebre na esquina.

Velha e abandonada, tal residência é inabitada já há algumas dezenas de anos. A respeito de seu histórico, ninguém sabe e nem quer saber. Só há boatos e lendas fúteis. Nada verossímil. Bobagens que relacionam o casebre a fatos de poltergeist são sempre citados. Mas, na minha limitada mentalidade, coisas do gênero sobrenatural são inválidas. Incredulidade total. Apesar de tudo, submisso a crenças e religiões, seja qual forem elas. Me sustento com a praticidade de ver a existência de um outro ponto de vista, menos zen, menos teológico, bem mais simplista que qualquer outro conceito de vida. Simples como viver. Casas assombradas são histórias mal contadas para criancinhas medrosas. Na minha opinião, todas elas.

A informação de que tal lugar será substituído por uma nova e recauchutada construção já foi confirmada. O terreno já tem novo dono. Não posso mais perder tempo. Tenho de ir para aquele lugar, ou vou me arrepender para sempre, tenho certeza. Sou limitado, mas nem tanto. Preciso abrir passagem para as minhas convicções. Tenho de mudar, talvez. Não sei. Mas sinto que preciso ir. Algo me chama e não é nada de sobrenatural. É como se viesse de dentro de mim. Estranho...

Tomo a iniciativa, saio de casa e sigo em direção ao lugar que me perturba desde moleque, de onde a janela de meu quarto sempre focava. Moro nesta rua desde que nasci e nunca tive coragem de atravessar sequer, a calçada em frente a tal casa. Irônico, talvez.

O movimento do bairro sempre foi calmo e ameno, tanto é que o número de pessoas que por ali passam é quase nulo. Logicamente que isso não importa agora. Em menos de trinta segundos chego até a entrada do casebre, mas nem me pergunte como.

Como diziam os rumores, o lugar era realmente velho, muito velho. O batente da porta tinha figurado como adorno dourado o rosto de uma criança em prantos, num alto relevo impressionante. Um acabamento perfeito, mesmo para um batente. Mas isso era algo que eu deveria desprezar naquele momento. Finalmente entro. O local exalava a enxofre muito densamente. Ao contrário do que imaginava, não me senti um estranho na casa, como se fosse um invasor, um explorador e sim como uma espécie de convidado de honra, que seria muito bem vindo ali. Pelo menos é o que o casebre me passava. Ele inspirava este sentimento dentro de mim. E não tinha nada de sobrenatural nisto.

Tanto o piso, como as paredes e o teto se encontravam muito velhos e desgastados, como se estivessem prestes a ruir. Teias, buracos, móveis quebrados, velas apagadas, molduras sem retratos, obras de arte indecifráveis - tudo isto era a imagem material do local, aparente e fisicamente, sem dúvida alguma. Era um conjunto de “nadas”.

O casebre nem escuro era, pelo menos de dia. Diferente de muitos outros lugares velhos e abandonados, este tinha grandes frestas em suas janelas semi-lacradas a madeira podre, o que permitia pequenos feixes de luz solar, que, somado a um todo, iluminava mais do que o necessário para uma casa intitulada de mal-assombrada. Cômodos, só existiam dois. Um pequeno quarto cúbico, sem cama e guarda-roupa, com apenas uma cadeira num dos cantos e um banheiro infestado de baratas, ratos e outros seres do submundo animal. Em relação aos demais, digo que a sala e a cozinha eram uma coisa só, fusionados no grande salão em que me encontrava. Se é que realmente existia uma sala e uma cozinha naquele casebre. Pelo menos eu pude notar uma pia com velhos armários embutidos e uma televisão de marca desconhecida com seus fios desencapados. Lâmpadas quebradas e uma escada que não levava a lugar algum, finalizavam o perfil daquele lugar, que de obscuro nada tinha.

Antes de partir, porém, não pude deixar de perceber que escondido debaixo da sombra de tal escada, havia um pequeno livro negro. A curiosidade ainda me instigava a fuçar o local, então fui e o peguei. Na capa estava grafado o nome “Realidade Surreal”. E só. Nome do autor e da editora, assim como o número de sua edição, entre outros tantos arquétipos de uma publicação, não existiam em tal suposta obra. Curioso.

De repente ouço fortes e agressivos ruídos. Mas tal estrondo vinha de fora do casebre. Eram as máquinas e os tratores se preparando para a demolição do local. A “armada” para a destruição total. Logicamente que tais maquinistas não sabiam que tinha alguém ali. Não hesitei. Antes que fosse demolido junto, tratei de sair rapidamente de lá, sem que tais homens pudessem perceber. Em menos de trinta segundos chego até a porta de minha casa, mas nem me pergunte como. Em questão de outros tantos segundos, o casebre velho e abandonado é totalmente destruído, como tudo que havia dentro. Bem, nem tudo, o estranho livro tinha sido salvo e agora me pertencia.

Infelizmente, nada pude fazer para impedir a demolição da casa, de onde só restou poeira. Mas de uma coisa eu tenho certeza, nunca mais esquecerei este dia, o local e o que ele me mostrou. Pois, finalmente pude abrir ainda mais minha mente, agora quase sem limites. Deixei minha submissão de lado e agora, de hoje em diante, sei que vou trilhar um novo caminho. O percurso que vai me tirar do sistema, definitivamente.

Sei que aparentemente era só uma casa abandonada, sem nada de assombrada, mas o importante foi o que ela quis me mostrar e eu vi com clareza. Não restam dúvidas, este novo caminho existe e está bem diante de nós.

É o Mundo Alternativo, e é para lá que eu vou.