ASAS PARA VOAR

O dia lá fora está nublado. Contudo, os pássaros ainda voam e cantam. Pessoas riem à toa. Buzinas soam à toa. As pessoas andam sem cumprimentarem-se. Celulares tocam, interrompendo uma conversa, um jantar, uma família...

O mundo teve duas guerras. Milhares morreram. O mundo já foi bipolar; agora é unipolar com desastres às margens. Países tiveram ditadores. O terrorismo ainda reina.

Religiões dividem-se, divergem-se, caluniam-se. Pessoas morrem a cada estalar de dedos; morrem de fome, doenças graves, assassinadas, refugiadas.

O materialismo é o novo deus. A banalidade é a cultura em massa. Somos as cobaias de todos os dias.

Portanto, para que viver? Por que viver artificialmente? Voltar para casa, comer uma refeição pronta, beber vinho com agrotóxicos, sentar num sofá de couro sintético, ligar a TV cancerígena e nos poluir com programas de poluentes.

Deus disse: “Haja luz”. Mas apenas vejo trevas.

Para que prolongar minha vida?

Olho para o lado e vejo meu companheiro de enfermaria dormindo ao som das máquinas.

Olho pela janela e vejo os masoquistas pássaros a voar pelo vento frio. Eles são os verdadeiros revolucionários. Gostaria de ser como eles. Voar ao bel prazer, alimentar-me dos velhos e defecar nas roupas caras dos chauvinistas.

Tomei minha decisão.

Apesar da idade, consigo alcançar os fios que mantém as máquinas ligadas. Com toda a minha força da terceira idade, puxo os cabos. Eles se rompem com estardalhaço.

Telas indicadoras de batimentos, pressão e respiração soam seus alarmes. Meu pulmão pede oxigênio. Dores fortes sinalizam em meu peito. Calafrio imediato.

Olho para fora. E vejo as pequenas aves alegres. Gostaria de voar.

Várias marionetes travestidas de branco tentam recuperar minha falsa vida. A vida que eu nunca quis.

Vejo minhas asas rasgarem a pele de meus braços. Meus pés viram garras. Penas substituem os pelos. Minha boca torna-se um bico adunco.

Bato as asas e começo a voar pela enfermaria. Derrubo tudo ao redor.

É a minha vez de voar.

Transpasso a janela, deixando os cacos de vidro caírem ao chão. E voo para o infinito.

Para o verdadeiro sentido de viver. Onde nada é de plástico, artificial, falso, sintético, verdadeiro, fácil, difícil, simples, complexo, morto, vivo, poluente, respirável, humano, desumano, selvagem, religioso, laico, bélico, pacífico, doentio, saudável, amável, detestável, bom, ruim, gostoso, amargo, iluminado, escuro...

Estou indo ao nada.

Deo Odecam
Enviado por Deo Odecam em 24/09/2011
Código do texto: T3237988
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