[Sob os Ferros da Ditadura]
[Quando eu volto do território dos sonhos, volto atarantado, custo a encarar a realidade... neste sonho aí, levei tempo para deixar de ser poeta, escritor, e voltar a ser físico nuclear que sou...]
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Eu já ouvira rumores de que poderia ser preso quando passei lá pela Praça Central. Alguns amigos radialistas, gente da nossa roda lá do Bar Serrot, me avisaram; “cuidado, esses seus versos estão pinicando o humor do delegado!”. Eu, sujeito de humilde extração, nada fizera de grave, já que a arma mais perigosa ao meu dispor é apenas uma Parker 51 que ganhei de presente de minha tia... Ah, além da caneta, eu tenho também a minha modesta coluna no semanário da cidade em que eu publico versos e crônicas... mas, até agora, nunca pensei que os meus textos pudessem ofender alguém do Governo! A Palavra — um perigo?!
Desorientado, temendo pelas humilhações que certamente me fariam passar, fui para o meu chalé amarelo na Avenida Minas Gerais. Entrei pela porta da cozinha sem que a minha me visse e atravessei a sala em direção ao meu quarto tomando cuidado para não pisar naquelas tábuas do assoalho, que, desde os meus tempos de criança, eu sabia que faziam barulho.
Não demorou muito e ouvi pancadas na porta da rua — eram eles! A pesada porta de duas folhas, não cedeu, mas rangeu a antiga fechadura e sacudiu os trincos de forma assustadora. As batidas fortes não me deixaram dúvida, pois é sempre assim: nunca haverá sutileza ou polidez nas batidas de quem usa como aríete a autoridade de que está investido para caçar alguém que feriu algum código. Gelado de medo, ingenuamente, escondi-me debaixo da cama, e colei-me tanto ao chão que eu mal podia respirar. Eu sabia que isto era perfeitamente inútil; é claro que iriam me achar assim que invadissem a casa!
A minha mãe já sabia que eu estava na mira do delegado. Na semana passada, depois de tantas falas com o promotor de justiça, ela havia ido à delegacia para falar com o delegado e colocar em “sala-livre” um tio, irmão de meu pai, que estava preso injustamente acusado de roubo num curtume da cidade. E, na ocasião, ouvira do delegado:
— “A senhora é uma lutadora, Dona Dagmar, mas este seu filho poeta ainda vai se meter em encrencas; olha só o que ele anda escrevendo no jornal!”.
Mas ela, em sua admiração por mim, não conseguia atinar com a razão ou motivo de os meus versos e crônicas serem considerados tão perigosos! Era sempre a primeira a saber da matéria da coluna, pois eu costumava lhe mostrar o texto antes de enviar ao jornal.
— Pois eu não vejo nada demais no que ele escreve! Seus textos falam algumas verdades que têm endereço certo! Deviam era corrigir os abusos que ele denuncia!
— É, mas às vezes, a verdade é inconveniente, Dona Dagmar! Tem gente importante que está se sentindo atingido pelos textos do jornal! Nós já vivemos sob a ditadura de Getúlio, sabemos o que pode acontecer nesses casos... E essa ditadura de agora não está p'ra brincadeira! Estou avisando em respeito à senhora!
Ela contou-me sobre a conversa que tivera com o delegado, mas não havia temor em sua voz: “não tema meu filho, seu trabalho é limpo, continue a escrever” — ela me dissera. Eu continuei...
E agora — essas pancadas na porta! — a ameaça do delegado aconteceu! Minha mãe, “a morena brasileira”, como é chamada nos poemas em que lhe eram dedicados, é uma mulher forte e destemida, “odeio soldado apertado em minha porta!” — gritou ao delegado quando este lhe enviou recado sobre a situação de meu tio por um soldado com a arma na cinta. Ao ouvir as pancadas, ela gritou:
— Esperem! Ou será que querem pôr a minha porta abaixo?!
Ela abriu a porta e encarou os homens:
— E então, o que querem?
— Queremos ele; cadê ele?
Ela ainda não se apercebera de que eu estava em casa; e do alto degrau da porta, a sua figura cresceu sobre os dois soldados:
— Eu não sei, e soubesse, não falava nem que me matassem! — Tornou a gritar.
Tentei me agarrar em alguma dúvida, mas não tinha jeito, “ele” era eu mesmo, não pensei que pudessem ter errado de casa, ou que pudesse existir algum engano — “ele” era eu mesmo! Ouvir alguém aplicar estas palavras em mim, assim, de forma tão contundente, e tão de perto que eu podia ouvir suas respirações, aumentava ainda mais o pavor. E aqueles modos bruscos, violentos são um ritual que não tem outra intenção que a de intimidar os que não comem na mesa do poder deste governo autoritário e rancoroso. Ela já sabia a razão da busca:
— E será que os poemas que ele escreveu mataram ou feriram alguém?!
Cosido ao chão, eu ouvi nitidamente o desconcerto causado pela resposta dela. Um pouco pela resposta dela, mas mais por ela não ter se intimidado, eles amainaram o tom da voz:
— Não é isso não, dona, é que nós somos policiais acostumados a caçar gente perigosa e...
A ouvir “gente perigosa”, a sua indignação cresceu; ela não deixou que terminassem a frase, voltou-se, apanhou sobre a mesa da sala o último exemplar do jornal:
— E então me falem, seus pinóia duma figa, cadê o perigo destes versos? Cadê?! Cadê?!
E quase esfregava o jornal na cara dos dois policiais, semi-analfabetos que nunca em toda a sua vida haviam sequer aberto um jornal.
— Ora, dona, a gente não sabe de nada sobre perigo de versos...
— É tanto ladrão, tanto assassino à solta por aí e vocês gastando coragem para perseguir um poeta! Tomem brio!
E emendou:
— Não sei dele não; ele tem muitos amigos, deve estar pela cidade, ou então, viajando!
E lá foi o conselho inútil para duas cavalgaduras do governo:
— Ele dá aulas e palestras nas cidades vizinhas, olhem no jornal e saberão onde ele pode estar!
Ela já sabia do despiste de meus colegas do jornal e da rádio que consistia em anunciar que eu estaria nesta ou naquela cidade para dar aulas e palestras sobre literatura brasileira. Já em modos de ir embora, os homens continuaram:
— De certo que não é pelos versos não, que querem prender ele, vai ver...
Ela sabia que eles iam arrumar alguma bobagem para proteger seus brios feridos atalhou:
— Vai ver nada! Se não é pelos versos, então qual é a acusação? Mostrem!
O seu tom já era de desistência:
— Ah... isso, nós não podemos fazer! Temos nossas ordens!
Minha mãe é muito querida e respeitada por toda a vizinhança, ajuda a todos com conselhos, orações, escreve cartas para os que não sabem ler. Ao ouvirem as vozes altas, começaram a aparecer os vizinhos e até os transeuntes. Ali, ninguém têm qualquer apreço por policiais, ou pela “gente do governo”. Sentindo-se apoiada, ela tornou a alçar a voz de modo a que todos pudessem ouvi-la:
— Meu filho é honesto, é rapaz culto, nada deve a ninguém! E se não têm do que acusá-lo, sumam da minha porta!
Ajuntou mais gente ainda.... Gritos vinham da rua:
— É isso mesmo, Dona Dagmar! Que absurdo! Deixem o moço em paz, vão atrás de bandidos!
Eles não quiseram ou não tiveram coragem de invadir a casa. Ouvi um carro arrancar e acelerar avenida acima. Esperei até que o silêncio tomasse conta do amplo terreiro em frente ao chalé, queria estar certo de que não havia mais gente por ali. Senti um alívio quando finalmente ouvi a minha mãe fechar a porta da rua. O clac da fechadura antiga, ao qual eu nunca dera atenção, soou como um anúncio de que a tranqüilidade habitual da casa havia sido restaurada. Saí do meu esconderijo e só então a minha mãe deu pela minha presença:
— Ah, mas então você estava aí! Pois fez bem em não aparecer! E olha: é melhor sair da cidade por uns tempos, vá para Amanhece, esconda-se lá no sitio dos Palmitos, do compadre Badio Preto!
Arrumei a mala, apanhei umas encomendas que ela tinha para o compadre Badio, entrei no jeep de um amigo vizinho que se prontificou a me levar, e tomamos o rumo do Amanhece... Ocasião da palavra, fiquei ruminando... estamos sob os ferros da ditadura... mas ainda há de amanhecer neste país!
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09h30 da manhã.... O tempo agora era outro: cumpria-me apenas voltar à habitual insignificância de cientista...