Narradores na contramão

Era uma manhã ensolarada de domingo. Alzira estava sentada no Jet Ski tentando religar o motor de partida quando sentiu a pancada violenta na nuca. Acordou três dias depois em um quarto de hospital, tentando decifrar quem era e porque estava ali. Não reconhecia nenhum dos rostos que sorriam para ela. Também não ouvia sons; era refém de um silêncio angustiante. Tentou erguer-se mas não sentia seu corpo da cabeça para baixo. Após um quarto de hora voltou a mergulhar na penumbra do inconsciente.

Foi quando acordei e me vi presa ao leito por um esmorecimento total. Na verdade, eu não tinha controle de meus movimentos mas estava lúcida e sem dor. A primeira coisa que fiz foi tentar gritar para chamar a atenção de alguém. Tudo em vão, a boca não abria e as palavras não percorriam o trajeto necessário para a finalização. As gotas translúcidas continuavam a descer pelo tubinho da sonda. Pensei: _ Putz, morri, agora vão chegar aqueles seres cor de lençol e me levam daqui. Não, ninguém chegou. Fiquei ali, na mesma situação até o amanhecer. Acho que adormeci e acordei várias vezes. Tive sonhos cômicos e pesadelos horripilantes.

Na manhã seguinte, aos poucos Alzira foi reconhecendo a senhora que estava a seu lado, cujos olhos vermelhos vinham de um choro continuo. Era sua mãe. Também havia um rapaz franzino, sentado com as pernas cruzadas, vestido todo de preto - seu irmão, com uma bíblia entre as mãos.

Ainda não conseguia falar, mas já compreendia o sentido das palavras. Sua mãe debruçou-se sobre ela e alisou seus cabelos. Sentiu um perfume forte de creme hidratante misturado com odor de esfiha de carne. Teve ânsia de vómito neste instante. De seu irmão, intuiu que ele havia se masturbado pois exalava um cheiro de esperma misturado à fragrância de água de colônia.

Por um instante pensou que vivia um pesadelo Kafkiano e havia se transformado em um animal felino, por causa do seu olfato aguçadíssimo. Queria se comunicar com a mãe mas como o peso das pálpebras era mais forte que o desejo, adormeceu.

Acordei novamente com o por do sol faiscando nas frestas da persiana. Os dois vultos à minha esquerda tomaram forma: minha mãe e meu irmão mais novo. Logo percebi que havia sobrevivido a não sei o que e já sentia o dedão do pé direito formigando. Olhei para minha mãe e falei: _ Ya de longo rategundes! Minha mãe não entendeu nada._ O que foi minha filha? –Disse abraçando-me e beijando minha testa. Notei então que eu pensava uma coisa e de minha boca saia outra. Olhei para meu irmão que folheava um grosso álbum de fotos de uma banda do tipo emo, chamada Funeral e disparei: _Hunda noguta mamabro! Meu irmão riu, sem entender nada, obviamente.

_Caraca!- pensei, acho que não vou mais conseguir me comunicar através das cordas vocais! - Quem sabe se posso teclar e me fazer entender? Então fiz um gesto a meu irmão pedindo que trouxesse meu notebook. Depois sobreveio a escuridão novamente.

No quinto dia de internação, Alzira já se recostava na cama, apoiada em dois travesseiros. Trazia um tablet de marca Ipad nas mãos e mostrava-o a seu irmão, após terminar de escrever uma pergunta. O irmão leu, retirou o fone do ouvido, sorriu e lhe contou que o mastro de um veleiro lhe acertara a cabeça em cheio, naquele domingo de regata na represa do clube.

A mãe não estava no quarto neste momento e só então Alzira percebeu que havia outra paciente na cama ao lado. A moça estava dormindo e trazia no semblante uma expressão tranquila. Em seguida uma enfermeira entrou com a bandeja de medicação e, após aplicar-lhe uma injeção, ajeitou o dreno no braço de Alzira que adormeceu cinco minutos depois.

Percebo que já faz uma semana que estou neste quarto e meus progressos de adaptação continuam lentos. Meu olfato voltou ao normal mas não consigo sentir o gosto dos alimentos. Vou ter alta amanhã, entretanto, ainda não consigo falar. O neurologista me disse que estes sintomas podem se estender por mais algumas semanas. Por enquanto só consigo me expressar através da tela de lcd. Porém, penso que a moça ao meu lado está pior do que eu, pois abre os olhos mas não reage a nenhum estímulo; e além do mais, ninguém vem visitá-la. Agora parece que adormeceu novamente.

Na manhã chuvosa da segunda-feira, Alzira se mostrava bem disposta mas teria que deixar o hospital em cadeira de rodas. A mãe, o irmão mais novo e o dono do veleiro que causou o acidente estavam lá para auxiliá-la. Inclusive o rapaz se dispôs a pagar as despesas extras que o plano de saúde não cobrira.

Agora, o irmão tinha acabado de instalar em seu tablet um programa que lia em voz alta (com sotaque norte-americano) as frases que Alzira digitava.

_ Ué, mãe, cadê a moça que estava do meu lado? Perguntou, apontando para a cama vazia, enquanto se preparavam para deixar o aposento.

_Não filha, esta cama é para acompanhante, nunca teve ninguém ali, as vezes em que dormi aqui com você fiquei na poltrona.

Naquele instante, ouvi algo como um estalo no ar e entendi que o narrador gritou: _Puta que o pariu, agora bagunçou tudo! Concordei com ele e fomos saindo corredor afora, os dois confusos mas esperançosos de que dali brotaria um texto a duas mãos, ou no mínimo, uma boa amizade.