Da Série - Verdades que eu conto... “PERSONA” O MATADOR DE ALUGUEL
Numa daquelas sextas-feiras frias e noturnas de agosto, passava uns dias em Poções, na casa do meu irmão Ernesto, na expectativa de receber um veículo “Corcel” com o qual pretendia viajar para o Rio de Janeiro onde tentaria a sorte como músico e jornalista. Estávamos ainda no final da década de 1960
Um tanto enfadado, dei uma parada no bar de Arnóbio, na esquina da então Praça Deocleciano Teixeira, que anos após, passou a denominar-se Raimundo Pereira de Magalhães. Ali era o point de encontro entre amigos em início de noitada. Encostado ao balcão, pedi uma dose de cognac ‘Macieira’ e verifiquei que, do meu lado direito, encontrava-se um sujeito magro, de baixa estatura, que cumprimentei com um boa-noite, recebendo imediata resposta em tom amistoso.
Em segundos, o cavaleiro que ‘não era da praça’, brindou cálice a cálice, desejando-me saúde e eu respondi ao brinde. Ao final da primeira dose, ele pediu outras duas doses de ‘Macieira’ e ao servir-me, disse: – Esta é minha, camarada.
Não me recordo bem quantas doses bebemos, pois o papo foi nos aproximando, apesar da sua maneira de falar, utilizando-se de gírias, pouco usuais em meu convívio social. Gabava-se de ser exímio atirador, que atirava de uma distância de cinco metros numa garrafa rompendo-lhe o fundo, sem danificar-lhe a boca ou o gargalo, até confessar, em voz baixa, a sua profissão de pistoleiro de aluguel que já contabilizava uns vinte e tantos homicídios, apesar de estar com pouco mais de trinta anos de idade. Daí por diante passou a relatar fatos mais íntimos da sua vida nômade, pois segundo disse, não ficava muito tempo nas cidades, onde passava alguns dias, apenas o suficiente para ‘executar certos contratos’ com seus pseudo mandantes. Sem muita cerimônia, mostrou-me um revólver 38 que portava na cintura e chegou a me dizer que estava em Poções para cumprir um ‘compromisso assumido de matar um elemento’...
Quando nosso papo engrenou, o amigo e poeta Florisvaldo Rodrigues apareceu e como o sujeito havia ido ao banheiro, disse-lhe de quem se tratava e ficamos por ali. Logo o homem retornou e ao apresentar-lhe a Florisvaldo, ele foi logo dizendo seu pré-nome, mas com um sorriso disse que preferia ser chamado pelos amigos de “Persona”. – Não gosto do meu nome e por isso, os meus amigos sabem disso e só me tratam pelo apelido de Persona... E arrematou: - Aquele que me chama pelo nome de batismo, eu já fico nervoso, achando que é Polícia. Já despachei uns dois ou três só por que quem me conhece sabe que meu nome mesmo é Persona e que não suporto ser tratado de outra forma, seja lá onde for...
Persona pra lá, Persona pra cá, depois da sétima ou oitava rodada de cognac Macieira ele já destravara totalmente a língua, embora estivesse um pouco titubeante. Demos-lhe uma carona para o hotel onde estava hospedado, mas antes de dirigir-se ao quarto, confessou-nos que tinha vindo a Poções para matar um advogado de nome Ernesto. Por alguns segundos fiquei estático; o único advogado com este nome em Poções era o meu irmão mais velho. Ao conhecer a intenção do tal indivíduo, fiz questão de oferecer-lhe os préstimos para pegá-lo no hotel no dia seguinte, isto é, às 10 horas da manhã, como ele mesmo declinara, já que gostava de acordar tarde e o fato é que já passava das duas da madrugada quando o deixamos para dormir.
Fui pra casa, mas não consegui dormir tranqüilo. A dúvida se deveria contar ao meu irmão sobre aquela conversa me atormentava. Conhecendo-o como era, de temperamento impulsivo, achei por bem de ficar próximo do Persona para evitar que eles se batessem, uma vez que o criminoso havia dito que sabia o nome da vítima e tinha o seu endereço, mas que ainda não havia recebido a fotografia que o mandante teria prometido entregar, logo, logo, o que deveria ocorrer no dia seguinte...
Fui sozinho ao encontro do sujeito, ainda achando que aquilo poderia ser uma brincadeira, ‘uma pegadinha’ como dizemos hoje. Mas não era nada disso.
Já o encontrei acordado, tomando café com ovos fritos e pão com manteiga. Saímos para conversar e ele pediu que fôssemos a um local onde pudesse exercitar sua pontaria, tratando de levar uma garrafa vazia para demonstrar sua rara habilidade.
Mais tarde, após a sessão cow-boy, disse-lhe que era irmão da sua próxima vítima e ele reagiu com certa acidez: - Não me diga, camarada... irmão!!!?
Daí por diante, nossa conversa passou a ser sobre o meu irmão e antes do meio-dia, já havíamos combinado o que fazer. Ele disse-me o nome do mandante, um tal de Dario, que o Ernesto havia surrado há meses passados. Fomos almoçar e combinamos que à tarde faríamos as apresentações.
Após o almoço deixei-o no hotel para a sesta e fui à cata do meu irmão para colocar-lhe a par da situação. A princípio, mostrou-se indignado, que ia fazer, ia acontecer, que já que o bandido estava ali para matá-lo ele teria que tomar a dianteira e mandar o patife para o inferno, etc, etc. Com o tempo, os meus argumentos prevaleceram e fomos ao hotel onde o Persona já me esperava de pé na calçada:
- E aí camarada...
- Olá, Persona, este aqui é o meu irmão, Ernesto....
- Boa tarde, doutor. Apressou-se Persona, apertando-lhe a mão estendida...
Daí por diante, fomos para o escritório do meu irmão, onde conversamos sobre os próximos passos. Persona propôs eliminar o mandante, enquanto Ernesto providenciasse um carro para sua fuga imediata após o ‘serviço’. Eu intervi e argumentei que aquele não seria o melhor caminho. Combinamos então que eu fosse com o Persona e o Florisvaldo à casa do mandante para que as coisas fossem postas em pratos limpos. E assim o fizemos.
A cara do Dario ao nos ver foi de completa estupefação, pálido de natureza, perdeu ainda mais a cor e passou a tremer os lábios e as mãos. O Persona, chamou-o para ‘um particular’ e entramos em um cômodo da sua loja, ao que Persona foi logo dizendo: - Olha aqui, seu filho da puta, você me pagou para matar um cara de bem, dizendo que se tratava de um mal elemento. Agora você vai me dar o resto do dinheiro pra que eu vá embora ou eu lhe amto aqui agora...
O Dario concordou, sempre olhando-me de esgueira, foi até o cofre e pegou a quantia que faltava passando as notas para o pistoleiro e dizendo que ia mesmo abortar ‘o serviço’ pois havia pensado e estava arrependido. Ao final, pediu pelo amor de Deus que nada disséssemos ao Ernesto que já o havia esbofeteado na rua e que certamente o mataria após saber daquele fato. Tudo isso ocorreu em menos de 24 horas...
O Persona foi embora e pensei que nunca mais o encontraria. Antes de viajar, disse-nos que morava em Eunápolis e que era conhecido na região. Se precisássemos dos seus ‘serviços’ era só entrar em contato que ele viria imediatamente.
Meses depois fui morar no Rio, visando gravar meu primeiro disco e trabalhar em algum jornal ou revista. Fui para Copacabana onde morava minha irmã, Tereza e fiquei por lá alguns meses.
Consegui uma oportunidade na RCA Victor e gravei meu primeiro ‘compacto’ e também, passei a escrever e diagramar a revista Estados & Municípios, pertencente ao meu cunhado, Ângelo Neto. Tudo corria, mais ou menos como planejara, com alguns percalços, mas nada de muito anormal.
Um dia, talvez seis ou sete meses depois daquela noite de Poções, que é o tema deste conto,parei para abastecer meu Karmann Ghia num posto de gasolina. Ao pagar a conta, um dos frentistas aproximou-se e perguntou: - Você não é o Ricardo? Pois é, meus amigos, a figura era o Persona que também resolvera morar no Rio. Desci, cumprimentei-o e disse-lhe que estava voltando para a Bahia ainda naquela semana. Procurei despistá-lo, pois quanto mais distância daquele sujeito, melhor para minha consciência. E essa foi a última vez que o vi.