Até que a vida nos separe - Dia 2 - Rotina(?)
A rotina é realmente uma coisa irritante. Chega ao ponto em que, depois de 6 anos (aproximadamente) trabalhando nesse hospital, já não aguento mais ver os mesmos rostos todo dia. Ter minhas mãos sujas de sangue todo dia. Cuidar de desconhecidos infecciosos todo dia. Lado bom? O silêncio. Sem buzinas, som alto, conversas alheias... Isso sim era um lado bom. A não ser quando era opressor. O silêncio, às vezes, sussurra mais do que deveria em sua voz sem palavras.
Claro que nem sempre era tão ruim. às vezes aparecia um paciente interessante, e até mesmo se conseguia uma boa conversa num tempo livre. E é claro, algumas pacientes também... A essas meus tratos eram veludo, e elas sabiam recompensar. Se é que você me entende.
Assim pensando, cheguei no saguão para mais um sábado rotineiro de trabalho. Ao cruzar o pórtico, já percebi que seria um dia cheio. Várias pessoas já esperavam atendimento, mesmo que ainda fossem 7 horas da manhã. Fui até meu armário para pôr meu uniforme, e nisso a voz monótona e sem vida do megafone avisou que o enfermeiro-chefe estava me esperando em seu escritório. Fui até lá, e este me disse que fui designado para cuidar da vítima do incidente da tarde passada, o assalto. Suspirei. Geralmente, isso significava esperar horas e horas por algum sinal de consciência do indivíduo, e depois vários dias de servir comida, dar banho, etc. Sempre me perguntei por que não designavam os enfermeiros homens para cuidar do banho das pacientes. Ao invés disso, tínhamos que dar banho naqueles merdas que reclamam toda vez que nossa mão (enluvada, é claro) passava abaixo de sua linha da barriga. Como se estivéssemos adorando fazer aquilo.
Como ainda estivesse exausto da noitada anterior, e definitivamente sem nenhuma pressa de conhecer o próximo marmanjo que teria de ver pelado, resolvi gazear um pouco o trabalho. Rapidamente, dei um pulo até o almoxarifado.
Há algum tempo, procurando alguns itens de limpeza que haviam me pedido, encontrei um pequeno armário, algo entre um cofre e um frigobar, escondido num canto do almoxarifado. Curioso, peguei o molho de chaves que o zelador havia me entregado e comecei a procurar a que abria a pequena porta misteriosa. Testando uma por uma, finalmente consegui abrí-lo e ver o que havia dentro. Pelo que pude perceber, o zelador tinha o mesmo hobby que eu: Pelo menos 10 garrafas das mais variadas bebidas eu encontrei ali. Comentei isso com ele, e em troca da minha discrição, ele me permitiu acesso ao bendito cofrezinho refrigerado.
Hoje escolhi cerveja. Não podia me embriagar, senão acabariam percebendo. Mesmoa ssim, acabei me empolgando um pouco, e saí do almoxarifado com a cabeça um tanto mais alta do que deveria.
Bem, não dava pra protelar mais... Já estava na hora de conhecer meu novo "amiguinho". Com esse pensamento não tão divertido, cheguei à UTI. Procurei o leito que continha meu enfermo, e quando o encontrei, quase pulei para trás, tão surpreso fiquei.
Contrariando minhas previsões pessimistas, o paciente era na verdade a paciente. Uma mulher. Linda. Talvez a mais linda que eu já houvesse visto naquele hospital. Talvez a mais linda que já houvesse pisado na Terra. Custei muito a acreditar em meus olhos, não achei possível que tamanha perfeição fosse real. Acho até mesmo difícil descrevê-la, mas vou tentar assim mesmo.
Seus cabelos eram negros, e mesmo assim me parecia que eles refletiam a luz, ao invés de absorvê-la. Mesmo que seu rosto levemente ovalado estivesse muito pálido, eu podia perceber que em outros tempos ele esbanjava vivacidade e alegria. Porém, sua palidez não era normal, de alguém nna situação dela. Era diferente, era um branco mais puro, mais vívido, não como mármore, era mais como porcelana. Seus lábios estavam sem cor, mas eu tinha certeza de que, não fosse o incidente, eles estariam vermelhos, sensuais como deviam ser, convidativos.
Seu corpo era um capítulo à parte. É complicado descrever aquela obra-prima sem revelar todas as fantasias e delírios que lampejavam por meu cérebro embriagado.
Ela era tão... tão... Impossível. Simplesmente impossível. Pela primeira vez em minha vida, tive completa certeza de que a bebida estava me causando alucinações. Sacudi a cabeça com força, pisquei os olhos umas dez vezes, e olhei de novo. Ela continuava ali. Mas eu tinha que ter certeza. Me aproximei lentamente: não tinha dúvidas de que eu podia quebrar aquela visão mesmo com apenas uma respiração mais forte. Com cuidado, coloquei a mão em seu rosto. Ofeguei.
Sua pele era como um pêssego, sedosa, macia, jovem, poderia até dizer virginal. Mas isso nunca foi o que mais me espantou. Eu esperava que ela fosse fria, como acontece normalmente com alguém que fica algum tempo naquele hospital frio, e ainda mais perdendo tanto sangue quanto ela havia perdido. Mas sua pele era quente, era mais que isso, era calorosa, como se ela sentisse minha mão em seu rosto e retribuísse a carícia.
Me afastei, com os olhos arregalados. Ela era real, até demais. Eu estava sem palavras, mas sabia de uma coisa: se eu ficasse ali mais um minuto que fosse, não responderia mais por mim. Fui o mais rápido que pude procurar o enfermeiro-chefe, e pedi a ele que encarregasse outra pessoa de cuidar daquela mulher. Ele, como eu já esperava, disse que estávamos com uma falta crônica de pessoal, e que se eu não apresentasse um bom motivo para essa troca, não poderia fazer nada por mim. Como se eu pudesse dizer que estava preocupado com o que poderia acontecer com ela se eu continuasse lá. Bom, pelo menos eu tentei, ninguém poderia me culpar depois, eu acho.
Voltei para a UTI, e tentei olhar o mínimo possível para ela. As horas passavam, e nada, ela não acordava. Era estranho. Se tínhamos tanta falta de pessoal, por que eu estava ali sentado, com tanto trabalho a fazer? As instruções foram claras: não saia do lado dela até que ela acorde, e depois ajude-a no que for necessário. Não eram ordens comuns, pois geralmente nós apenas visitávamos rotineiramente os leitos, enquanto não haviam alterações no quadro do paciente. O que aquela menina tinha de tão especial, afinal?
Tique-taque, tique-taque. As horas passavam, o fim do meu turno se aproximava, e aquele anjo misterioso insistia em não acordar. E minha curiosidade, é claro, só aumentava. Eu tinha várias perguntas, e precisava de respostas.
Meu relógio interno, já tão acostumado com essa rotina, meio que despertou um sinal dentro de mim, às seis em ponto. Fim do turno. Tinha agora um dia e meio de folga pela frente, até o turno da segunda. Normalmente, esse era o momento mais feliz do meu final de semana, mas hoje eu só conseguia pensar naquela bela e inusitada interrogação que aparecera em minha vida.
Ao dedilhar meu Texan naquela noite, me passou pela cabeça que eu talvez estivesse tocando com mais emoção do que o normal... Mas provavelmente a explicação para aquilo estava na garrafa vazia de vodka jogada a um canto da sala.