Que Diabos!

Acordei-o outra vez com fortes dores no abdômen e com a bexiga quase explodindo.

Como todos os dias ele levantou-se praguejando e pegou um cigarro na mesa de cabeceira que meteu na boca e acendeu a caminho do banheiro. Fez suas necessidades sonado e colocou a mão na cabeça como todos os dias. Fumou até o fim e apagou no cinzeiro que ele mantinha próximo ao basculante. Foi até o chuveiro e não conseguiu acertar a temperatura a água. Claro que eu atormentava. Claro que eu o possuía. Afinal, sou um demônio. Um diabrete. Uma pequena Legião, talvez. Não que ele fosse mal e perverso muito menos um ser espiritual. Só humano. Demasiadamente humano. Como diria aquele filosofo alemão que também foi assediado e terminou seus dias carcomidos pela lues dentro de um hospício sórdido.

Meu nome será dito na hora certa. Ainda é cedo. Insultou novamente debaixo do chuveiro frio. Ele sempre dizia que melhor hora do dia era a hora do banho e que depois disso tudo piorava. Vestiu-se em negro como todos os dias, colocou seu pesado casaco de couro com revestimento de pele, pegou sua carteira e seus trocados, o isqueiro, o telefone celular, a sua maconha e distribui pelos bolsos das calças. Pegou sua chave, abriu e trancou a porta de seu apartamento de solitário & ganhou a rua em direção ao seu trabalho. Procurou algo no bolso do casaco e encontrou. Seus anteparos contra a humanidade. Seus escudos para com o próximo. Um aparelhinho que reproduzia música do computador e seus óculos escuros que o faziam enxergar o mundo em um tom de sépia. Quando ele finalmente acendeu e deu a primeira tragada no seu baseado comecei a conversar com ele como fazia todos os dias:

-Que merda, hein? Vai trabalhar naquele emprego medíocre que você odeia?

-Não encha o meu saco, cara. Cai fora da minha mente. Respondeu-me indignado como todos os dias.

Vinha uma garota estonteante pela mesma rua em que ele caminhava, porém em direção oposta. Ele iria encará-la de frente. Era alta, bem esculpida de corpo e rosto, cabelos longos negros e sedosos e tinha um andar solto, fluído. Uma modelete de passarela para ninguém botar defeito nem um velho secular como eu. Claro que fiz sua cabeça virar no momento que a menina passou por ele. Claro que o induzi a pensamentos iracundos e luxuriantes. Claro que sussurrei em seu ouvido que essa moça iria ficar um tesão jogada em sua cama e nua em pelo. Ele não resistia quando eu lhe dizia essas coisas. Esses eram seus pecados e eu sabia disso. Sabia que sempre o pegava pelo sexo, pelo excesso e pela sua loucura intrínseca diária. Adorava quando ele ouvia sua musica mundana. Ás vezes ele atacava de Bach o que me irritava profundamente. Esses sons celestiais cansam minha beleza milenar. E há anos esse cara convivia com a minha possessão. E não tomava nenhuma providência prática para se livrar de mim. Então eu continuava a fazer meu trabalho. Possui-lo e conduzir seus pensamentos mais vis. No seu passo marcial chegou ao ponto do ônibus que o levava todos os dias para aquele jornaleco de quinta categoria em que ele labutava apenas para não morrer de inanição e jogado numa sarjeta qualquer. Um dia ele iria morrer por esse ritmo brutal de vida que levava e eu teria que achar outro otário para me hospedar. E isso não constituía em tarefa difícil. Nasce um filho da puta a cada dois segundos. Pode acreditar em mim. Sei como funciona o mecanismo. Nascimento e morte. Morte e nascimento. Incessantemente. Matemática básica pura e simples. É assim que funciona e que sempre funcionou. Esoterismo? Vai sonhando. Que um dia eu te pego pelo pé. Lá vai outra menina gostosa passeando com seu totó que mais parece um bicho de pelúcia. Claro que lhe mostrei as curvas da deliciosa. Senti que seu membro se manifestava por debaixo das calças pretas de veludo cotelê. Ele subiu o zíper de sua jaqueta. Era um tique que ele tinha. Como também o de levantar o cenho esquerdo e morder o lábio inferior. Fumou da erva o quanto quis e guardou o que sobrara no bolso esquerdo traseiro. Sempre fazia isso. Esperou o ônibus por quinze minutos e pagou a passagem com três moedas. Duas feiosas e escandalosas berravam animadamente seus assuntos chatos, banais e desinteressantes uma para a outra. Fiquei atormentando o cara para manda-las para o quinto dos infernos e ele apenas aumentou o volume da música que estava ouvindo. Uma coisa pesada e soturna que me enchia de regozijo. Uma coisa “satânica” que me fazia delirar. Continuei falando coisas em sua cabeça.

- Vai encontrar aquele filho da puta que te odeia e que fica cortando seus textos? Vai pedir penico para ele?

-Cara, vai se fuder. Saia de onde quer que você esteja. Já tenho problemas suficientes para resolver e você ainda me causa mais? Ora, veja. Posso ouvir meu hardcore sossegado ou fica difícil para você? Foi o que ele me disse.

-Fica bem difícil sim. Minha missão é atormentá-lo e enlouquece-lo. Se bem que te deixar maluco eu já consegui. Acende um cigarro aí.

-Você está louco! Exclamou. Não posso nem fumar no bar imagina dentro de um ônibus.

-Sabe de uma coisa? Você é um chato. Um retrógrado.

Ele calou-se e tentou concentrar-se naquela música intensa cheia de conotações políticas que não levaram ninguém a lugar nenhum. Óbvio que eu enchi sua mente com um turbilhão de pensamentos contraditórios. Povoei sua cabeça com ideias paranoides e absurdas, mas ele tentava acompanhar a letra da canção. Chegamos ao ponto e ele saltou procurando seu isqueiro no bolso da calça. Encontrou, acendeu mais um cigarro enquanto eu saltava de um lado para o outro de seu ser.

A cada tragada eu ficava mais ousado. A cada dia eu o atormentava mais e mais para ele virar tragos e mais tragos ao final de seu longo e cansativo expediente. Ele pegou o elevador como fazia todos os dias, sentou-se a sua mesa de trabalho como todos os dias e começou a digitar alguma coisa desimportante como todos os dias. Um contínuo passou por ele e saudou-o com um prosaico “bom dia” enquanto ele lhe rosnou:

-Só se for para você. E fechou a cara definitivamente. Era minha hora de atacar e novamente lhe trouxe pensamentos e obsessões. O fiz lembrar-se de seus falecidos pais. Como eu fazia todos os dias. Eu lhe trazia remorsos para a mente e o coração. Ele nem sabia remorso de quê. Levantou-se para um chá. Voltou com um copo plástico e continuou seu trabalho medíocre. Seu chefe chegou e nem olhou para ele. Vamos tratar disso já! Em dez minutos ele já tinha se desentendido com o seu superior outra vez. Eu tinha feito isso. Muito fácil. Só olhar periférico, simples assim. Ele voltou emputecido por algum motivo e com uma folha de papel na mão e resolveu fumar um cigarro no reservado. Que dúvida que um bastão de nicotina me deixava completamente ensandecido e agradecido. Eu iria minar suas forças enquanto ele estivesse caminhando sobre o chão. Era minha sagrada obrigação. E eu estava sendo bem sucedido. Quando se faz o que gosta todo trabalho é um prazer. E eu sou bom no que faço, senhores. Enquanto ele fumava, eu lhe dizia:

-Que tal amealhar uma semana de folga só para ficar de papo para o ar e beber até cair?

-Escute, chapa. Seja lá o que ou quem for você, saia de onde quer que você esteja. Estou mais sujo nesse pasquim nojento do que pau de galinheiro e tenho prestação do apartamento para pagar. Só faltam duas e não posso me dar o luxo de ir para olho da rua da noite para o dia. Meus livros não estão vendendo bem e estou empacado no meu romance. Não aporrinha, caralho! E jogou sua bituca no chão com raiva voltando assim às suas ocupações cotidianas. Ao fim de seu turno fiz suas pernas o levaram ao bar de sempre.

Ah, delícia. Meu lugar preferido da Terra! Bares. Gente fraca, bêbada, viciada, amargurada, nulidades espirituais e sociais, com energias negativa carregadas, arrogantes, ignorantes, malsucedidos, fracassados de todos os tipos e formas, gabolas, mentirosos, trapaceiros de todos os graus, ladrões, dependentes de qualquer coisa que fizesse uma confusão mental, dândis cheios de si e mendigos esfarrapados implorando por atenção. Sinto-me em casa. Ele pediu sua bebida e ficou pelo balcão mesmo. Um trago atrás do outro até embotar completamente qualquer vestígio de coerência e consciência. Você acha isso cruel? É cruel. E minha função é fazer isso mesmo. Como eu disse, sou muito bom no que faço. Já fiz isso com gente mais qualificada do que esse escritorzinho marginal. Ainda não está na hora de revelar meu nome. Quando ele já estava trançando as pernas o levei para casa para dormir. De bobo eu não tenho nada. Sou mais antigo que o tempo. Sou esperto não por ser quem sou, mas por ser velho. Ele aterrissou na cama, embriagado como um cão e derrotado pela vida por mais um dia. Eu tinha planejado pesadelos recorrentes para ele durante todo o dia e comecei a por em prática. Dia após dia. Noite após noite. Semanas. Meses e anos. Até o mais amargo fim. Um dia era igual ao outro para mim. E por todos os dias eu transformaria a vida desse cara num inferno sem fim. Colocaria diante de seus olhos tudo que ele odiava ou sentisse repulsa. Nada de bondade, altruísmo, atenção, compaixão, amor. Apenas ira & luxúria para o boneco. Não disse que eu sou bamba? Há anos eu fazia a mesma coisa. Não tinha como dar errado. Nos fins de semana eu deixava ele entregue a leitura. Sua mente não desligava nem dormindo. E a noite ele iria exagerar na dose que qualquer coisa forte que caíssem em suas mãos e eu levava sua pernas aos bordeis mais sórdidos que eu pudesse imaginar e o colocava na cama com as profissionais mais ordinárias que eu pudesse encontrar. Para mim era uma vida boa. Acho que falei cedo demais...

Um dia qualquer de um ano qualquer quando fui fazer minha primeira imprecação matinal e leva-lo a mais um passo próximo do abismo, surpreendentemente ele me disse:

-Basta. Já fazemos isso faz muitos anos. Que tal tentar algo diferente hoje?

Aquilo me soou como uma nota amarga. Pior ainda. Senti como se um taco de beisebol tivesse me acertado bem no meio das costelas. Eu me sentia combalido. Minha respiração era ofegante e regular. Eu não desisto e assim tentei novamente. Parece que não surtiu o efeito desejado e no seu horário de almoço ele comeu pouco. Durante a noite bebeu menos que sua cota habitual. Foi para casa cedo e começou a ler um livro muito estranho. Eu me sentia um caco naquela noite e ele dormiu logo e acordou bem disposto no dia seguinte. Passei mais alguns meses tentando fazê-lo me obedecer como antes, mas todos os meus esforços pareciam inúteis. Merda. O que tinha acontecido. Perdi todo o meu poder sobre ele. Nem imaginava o que poderia estar fazendo. E hoje estou aqui. Existo. Mas combalido. Derrotado. Como um velhote inválido babando em sua cadeira de rodas. Não sei se ele partiu para o lado da esquizofrenia ou se achou algum tipo de iluminação.

Agora – derrotado, aniquilado e aprisionado para sempre – posso dizer meu nome.

Eu me chamo EGO.

E quem fica desatento me tem. Ou seja, a maior parcela da humanidade.

Curitiba, 6 de setembro de 2011 (Semana da Pátria ) 10 graus celsius – inverno.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 06/09/2011
Código do texto: T3204305
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.