FRONTEIRA DO SILÊNCIO
 
                                     Capítulo X
 
       Vencido pelo cansaço proporcionado pelas horas de narrativas do avô, Miguel enfim adormecera deitado na relva. Soprava uma brisa suave de primavera e a sombra dos flamboyants convidava a uma deliciosa soneca.
  
Enternecido com a imagem do neto adormecido ao seu lado, Raimundo pôs-se a se recordar da sua infância que, a despeito de receber carinho e amor dos pais, não desfrutava de uma vida de fartura. Tendo seus pais, optado pela separação quando ele ainda tinha oito anos de idade, viu-se na qualidade de irmão mais velho, obrigado a buscar atividades que lhe proporcionasse algum ganho e assim pudesse ajudar sua mãe que se desdobrava em fazer render a mesada minguada que recebia como pensão.
 
Vendo seu neto deitado ao seu lado, tendo o coitadinho desencarnado tão cedo sem aproveitar a vida física, pensou de épocas de sua infância, quando não podia dar-se ao luxo de brincar. Lembrou-se do dia da chegada de um circo ao bairro em que morava.
 
Aquela quinta-feira não foi como as outras. Passava das 10 da manhã quando a rotina da escola foi quebrada pelo burburinho que vinha da rua. Todos se apressaram em sair para ver do que se tratava. Não adiantaram as ordens das professoras para que permanecessem sentados nas carteiras. A curiosidade foi maior. Acotovelados no muro os alunos espremiam-se para conseguir um melhor lugar que os possibilitassem ver o espetáculo que passava. À frente duas balizas se exibiam com roupas coloridas e realizando performances com bastões e saltos acrobáticos. Lindas mulheres montavam cavalos bem cuidados que seguiam a trote. Logo mais atrás, quatro palhaços desengonçados simulavam brigas entre si de forma espalhafatosa, arrancando risos da platéia improvisada nas calçadas e nos muros. Todos pararam. O trânsito, as pessoas que passavam, as donas de casa, o pessoal da padaria, do mercadinho e do açougue.
 
Todos queriam ver os saltimbancos anunciando a chegada do circo. Em cima de um calhambeque todo enfeitado, um mágico fazia truques que deixavam todos de boca aberta, enquanto um quinto palhaço munido de um megafone anunciava: “amanhã tem espetáculo"? Os demais respondiam: "tem, sim senhor". Ele prosseguia: "oito horas da noite?" Novamente a resposta: "tem sim, senhor". E finalizava: "E o palhaço, o que é"? E a resposta: "É ladrão de mulher"!
Seguiram adiante com o cortejo mambembe alegrando a todos com a graça, as roupas multicores e os apetrechos. Um  domador fazia quatro cachorrinhos se exibirem. Os elefantes seguiam a trupe em passos lentos e alheios sendo conduzidos por competentes domadores. Aquele desfile era um chamariz para que todos comparecessem a estréia do circo que aconteceria na sexta feira a noite. Seguiram adiante percorrendo as ruas do bairro e a rotina voltou.
 
O trânsito fluiu, as pessoas seguiram seus caminhos, as donas de casa retomaram seus afazeres, e o pessoal do açougue, do mercadinho e da padaria voltaram ao trabalho. Mas durante o resto do dia o assunto era o circo. Na escola, percebendo o interesse das crianças, as professoras pediram que um grupo fizesse uma descrição do que tinham visto, o que manteve os alunos concentrados no resto da aula. Ao saírem da escola, o assunto não poderia ser outro.”Vou pedir ao meu pai pra me levar ao circo"; "vou gastar minha mesada todinha vendo os espetáculos"; "quero ver os palhaços"; "gostei mais dos elefantes e dos cachorrinhos amestrados"; "E o mágico, você viu? Ele é demais". Ao passar na porta da padaria onde o cheiro de pão fresco sempre me abria o apetite e eu parava para ver os deliciosos pães doces na vitrine sendo visitado por abelhas, escutei os comentários das pessoas presentes.
 
O assunto era um só: O circo. Eu pensei: quero ir ao circo. Preciso ver tudo de perto. Ao chegar em casa por volta do meio dia, corri para os braços da minha mãe e contei tudo. Não deixei escapar nenhum detalhe do que havia visto. Meus olhos brilhavam e meu rosto franzino exibia um sorriso de felicidade. O circo tem essa capacidade, de tornar as pessoas felizes. Meu olhar se perdia nas paredes talvez vislumbrando as imagens que eu veria no circo. O resto da tarde, após fazer os deveres de casa, fui brincar com meus amigos e o assunto era o mesmo: o circo. Um deles me perguntou: “Val, você vai”? Pela primeira vez franzi o cenho e uma interrogação pairou na minha cabecinha. Mas eu respondi: "vou sim, não perco por nada deste mundo". Os outros meninos falavam: “meu pai disse que vai me levar"; "minha mãe vai comigo"; "lá em casa vai toda a família”.
 
Ao chegar em casa, olhei para a minha mãe que se concentrava na costura de um vestido por encomenda, mal me dando atenção. Eu sabia que a situação financeira dela não era das melhores, tendo que se desdobrar dia e noite como costureira, muitas vezes costurando  até a madrugada, para completar com seu minguado ganho a mesada dada pelo meu pai. Éramos três filhos, eu o mais velho com oito anos, e duas irmãs mais novas que eu. Meio reticente, como se já soubesse a resposta, timidamente perguntei: “Mainha, a senhora me dá dinheiro para ir ao circo”? Ela me olhou com ternura e percebi lágrimas em seus olhos quando me respondeu: “meu filho, se eu te der dinheiro para você ir ao circo, vai faltar para o alimento de vocês.Gostaria muito de poder te dar, mas não posso”. Fui dormir triste naquela noite.
 
No dia seguinte na escola os colegas perguntaram: “você vai também”? Já desanimado eu desconversava e mudava de assunto. Não poderia ir ao circo como as outras crianças. Durante a aula eu permanecia ausente e com o pensamento distante, sendo chamado à atenção por diversas vezes pela professora. E assim passou todo o horário escolar sem que eu percebesse. No caminho de casa procurei seguir só evitando a companhia dos colegas.
 
Segui por uma outra rua para evitar os alunos na saída da escola. Estava tão distraído que sem querer cheguei ao largo de Roma onde o circo estava armado. Parei extasiado com aquela imagem. Uma enorme tenda e vários vagões em volta, circulados por grades de ferro. As pessoas trabalhavam alegres e cantando, ultimando os preparativos para a estréia. Resolvi me aproximar. Com o rosto colado na grade eu via um homem alimentando os elefantes e os cavalos. Percebendo que eu espiava, o homem aproximou-se e me cumprimentou, perguntando: “amiguinho, você virá para a estréia”? Maravilhado pela proximidade com os animais eu respondi que não e expliquei que minha mãe não tinha condições. Ele disse: “calma, para tudo dá-se um jeito”.  E continuou a sua tarefa.
 
Naquela noite todos do bairro e da vizinhança compareceram ao circo para o espetáculo de estréia. Sem falar nada para a minha mãe, fui ao largo de Roma e fiquei observando enquanto as pessoas faziam filas para entrar. De lá de dentro ouvia-se músicas alegres. Do lado de fora o cheiro de pipoca perfumava o ar. O espetáculo começou. Sentado no meio fio,  escutei uma voz saudando a platéia: “senhoras e senhores, boa noite! O espetáculo vai começar”! fiquei ali por algum tempo escutando os risos e os gritos das pessoas. Resolvi ir para casa enquanto todos se divertiam, menos eu. No caminho tomei uma decisão: já que minha mãe não pode me dar o dinheiro, vou trabalhar. Decidido a isto, cheguei em casa sem falar nada para minha mãe e fui dormir.
 
   No dia seguinte ao retornar da escola e após almoçar, peguei meu carrinho de mão feito de madeira e saí pela vizinhança de porta em porta perguntando: “alguém tem jornais e revistas velhos que não queira mais”? fiquei surpreso como em pouco tempo consegui juntar grande quantidade de revistas “O Cruzeiro” e “Fatos & Fotos”, além de muitos exemplares do Jornal “A Tarde”. Coloquei o que pude carregar no carrinho e corri para o açougue onde vendi boa quantidade para enrolar carne, além do mercadinho, onde eles compraram para enrolar sabão em barra. Era cansativo, mas pelo menos eu conseguia algum dinheiro. Contente com o que consegui arrecadar no sábado, corri para o circo na esperança de comprar a entrada. Lá chegando fiquei decepcionado porque o preço da entrada era bem mais do que eu conseguira. Pelos meus cálculos naquele momento percebi que teria que vender muitos jornais e revistas até conseguir o total. Desiludido, peguei o meu carrinho e fui para casa. Nesse meio tempo fui acometido de uma forte crise de bronquite que me deixou de cama por quase uma semana.
 
   Após me recuperar, obstinadamente todos os dias eu deixava de brincar para realizar aquela tarefa e aos poucos fui juntando o que conseguia. Passaram quatro semanas e eu percebi que ainda faltava para completar. Durante a aula na quinta-feira, um colega me disse que o circo iria embora após o espetáculo de domingo. Entrei em pânico. Como ir embora, sem que eu tenha assistido um espetáculo sequer? Após a aula fui correndo ao circo confirmar a notícia. Encontrei aquele homem que eu vira alimentando os elefantes e os cavalos e fui logo perguntando: “meu senhor, é verdade que o circo já vai embora”? Ele respondeu: “É verdade, sim. A última sessão será domingo”.
 
Percebendo a minha frustração ele perguntou: “você ainda não veio a nenhuma sessão, não foi”? Balancei a cabeça respondendo que sim, com ar de tristeza. Falei que havia trabalhado todos os dias para completar o dinheiro da entrada mais que não consegui o total. O homem, coçou o queixo, olhou para os lados, afagou minha cabeça e falou: “Olhe, eu fui uma criança pobre também. Perdi meus pais cedo e meus irmãos foram espalhados e nunca mais os vi. Hoje faço do circo a minha família. Vamos fazer o seguinte: amanhã a tarde(sexta-feira), o espetáculo será para parentes dos funcionários do circo que moram aqui ou nas cidades vizinhas. Quero que  você venha com sua mãe e suas irmãs para assistirem o espetáculo como meus convidados, está bom assim?” Parecia um sonho. Eu não estava acreditando. Dei um sorriso para aquele homem e corri para casa para contar a minha mãe.
  
Na tarde de sexta-feira, lá estávamos ansiosos a espera do homem que não aparecia. Eu já estava perdendo a esperança quando apareceu um palhaço e veio falar comigo, dizendo: “que bom que você veio”! fiquei surpreso quando reconheci a sua voz. Era o mesmo homem que havia me convidado. Ele era um dos palhaços. Apresentei minha mãe que agradeceu muito aquele caridoso senhor e as minhas irmãs. Mas com uma ponta de orgulho, saquei do bolso um saquinho de pano com moedas e o entreguei a ele dizendo: “foi tudo que consegui juntar com a venda dos jornais e revistas. Espero que ajudem a pagar pelas entradas”. Os olhos dele alagaram e lágrimas escorreram pelo seu rosto borrando a maquiagem. Ele pegou o saquinho com moedas e entregou a minha mãe dizendo: “use para auxiliar no sustento deles”. Entramos no circo e assistimos ao espetáculo mais lindo de toda a minha vida. Impossível narrar cada detalhe que ficou para sempre na minha memória. Depois da sessão, nos despedimos daquele senhor bondoso e fomos para casa. Naquela noite me deitei e dormir com um sorriso de felicidade no rosto e adormeci sendo beijado pela minha mãe.

 
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Cônsul POETAS DELMUNDO – Niterói – RJ
Valdir Barreto Ramos
Enviado por Valdir Barreto Ramos em 30/08/2011
Reeditado em 30/08/2011
Código do texto: T3191609
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