FRONTEIRA DO SILÊNCIO
 
                                           Capítulo VII
 
   O tempo de exposição ao frio e ao calor, ao sol e chuva associado à sede e a fome, em breve tornaram meu corpo frágil e sem forças e eu me esforçava por manter o mínimo de lucidez. Precisava estar lúcido quando porventura chegasse algum resgate. Perdi a noção do tempo em que permaneci agarrado naquela bóia de sinalização rezando para ser salvo e para não cair ao mar em um movimento brusco causado por alguma onda. O mar de vez em quando se agitava transformando-se ao sabor dos ventos em imensas paredes de água, balançando a bóia como se fosse um brinquedo e eu agarrava-me nela com todas as forças que me restava. Quando acalmava eu aproveitava para descansar um pouco. Observei que os ventos sopravam com mais intensidade e mais frio. Contínuas correntes de ar açoitavam meu corpo queimado pelo sol. Minha pele tinha um aspecto estranho como se o sal do mar a estivesse ressecando sob a ação solar. Eu nada tinha para fazer a não ser esperar, esperar, rezar, rezei muito. Pedia sempre por um socorro e proteção para os meus que ficaram em terra e àquela hora certamente estariam pensando em mim. De vez em quando me perdia em pensamentos e às vezes relembrava épocas da minha vida. Lembrei de quando meu pai me levou para pescar pela primeira vez. Para mim aquele foi um momento marcante. 

   “Filho! Acorda! Não podemos nos atrasar. Clareava e o sol aparecia no horizonte. O curió na gaiola cantarolava saudando o dia. Rapidamente levantei e me arrumei para aquela aventura. Eu ia pescar pela primeira vez. Meu pai me apressava a todo instante. Enquanto minha mãe servia o café da manhã ele separava o material da pescaria. Na areia o barco nos esperava. Colocamos tudo dentro dele: material de pesca, água, algum alimento, bonés para proteger do sol e assim já devidamente acomodado na proa eu observava ansioso meu pai ajudado por amigos a empurrar o barco para a água.  Em breve naquele mar espelhado e sem ondas o barco se afastava impulsionado pelo motor de popa. A minha satisfação era indescritível! A liberdade que eu sentia só podia ser comparada com a liberdade da gaivota que nos acompanhava num vôo solitário naquele imenso céu azul.
 
   Sentado na proa do barco e com os pés na água eu me sentia um desbravador, um marinheiro em busca de aventuras. Meu pai sentado na popa manobrava atento o motor do barco, cuidando do rumo e evitando os obstáculos a frente como arrecifes e outras embarcações. Eu olhava para trás de vez em quando admirado de ver meu pai manobrando o motor. Era o meu herói guiando-nos para aquela aventura de forma segura e obstinada. Meu pai sorria para mim como se estivesse orgulhoso do filho comportando-se na proa da embarcação como se fosse um veterano.
 
    Enfim chegamos ao ponto onde íamos pescar. Meu pai desligou o motor, jogou o ferro (âncora) n’água e começou a preparar as linhas de pesca. Em pouco tempo estávamos com as linhas a fundo sentindo as beliscadas dos peixes. Uma gaivota rodeava o barco de quando em vez, talvez imaginando que teríamos sorte na pescaria e que algum peixe sobrasse para ela. Atrevo-me a pensar que era a mesma gaivota que nos acompanhou durante o percurso até o pesqueiro. Uns dez minutos após senti um enorme puxão na linha, quase a arrancando de minhas mãos. Gritei desesperado: Pai! Corre aqui! Meu pai riu e disse: segure firme, marinheiro. Vai deixar o peixe levar a sua linha? Assim o fiz e sempre observado pelo meu pai depois de algum tempo de luta o peixe finalmente se rendeu enquanto eu puxava a linha de pesca. Coloquei-o dentro do barco e observei nervoso que o peixe se debatia tentando livrar-se do anzol. É um badejo meu filho. Parabéns! Você pescou seu primeiro peixe. Meu pai com certo cuidado tirou o anzol da boca do peixe e o colocou no balde onde depositaríamos os pescados. Colocou nova isca no meu anzol e atirou de volta para o fundo. Daquele momento em diante a pescaria mudou para mim. Eu não parava de olhar para o peixe que acabara de pescar se debatendo dentro do balde com pouca água. Parecia sufocado e ansioso por sair dali. Meu pai continuava pescando e nada pegara até o momento. Aquele era o único peixe da nossa pescaria em quase uma hora desde a nossa chegada. Foi então que o meu pai amarrou as linhas dele sentou no banco do meio do barco e começou a conversar comigo. Meu filho é tão bonito o seu sentimento com relação ao peixe! Estou vendo no seu olhar que você está penalizado por vê-lo assim. Deixe que eu te diga uma coisa. Deus fez o céu, o mar, as plantas e todos os seres vivos. Deu a tudo isso o nome de natureza. Existe uma coisa que você precisa saber que se chama cadeia alimentar. Por exemplo, aqui no mar tudo é alimento; os peixes maiores se alimentam de outros peixes menores e assim vai acontecendo até que os peixes pequeninos tenham apenas micro-organismos e algas para se alimentar. Com os seres humanos é diferente, nos alimentamos do que podemos adquirir com o dinheiro ganho com o nosso trabalho. Mas existem outras formas de se conseguir alimentos: caça, plantação, pescaria, por exemplo. Os índios não ganhavam dinheiro no seu trabalho e o seu alimento era retirado da caça, das plantações e da pesca. Mas tudo isso tem que ser feito de forma equilibrada sempre se respeitando os ciclos de procriação dos animais, plantas e peixes, caso contrário poderemos provocar desequilíbrio nos ciclos de reprodução  e a extinção das espécies. No nosso caso, estamos praticando uma pescaria. Existem vários tipos de pescarias: esportiva, predatória e para a alimentação. Nós de maneira nenhuma viemos aqui para pescar de maneira desordenada e sim para conseguir algum peixe para nós e para os amigos. Por isso não fique com a consciência pesada por ter pescado o badejo. Era o destino dele.
     
   Escutei atentamente toda a explicação do meu pai, ora olhando para o pobre peixe que se debatia no balde. Mesmo diante de toda aquela explicação eu não conseguia deixar de sentir pena daquele peixe. Meu pai então resolveu me propor um acordo: devolveríamos o badejo ao mar e a partir daí os próximos peixes seriam guardados para levarmos para casa. Concordei de pronto e meu pai disse; agora pegue o badejo, coloque-o na água porém não o solte logo. Deixe que ele se recupere um pouco e quando estiver pronto você o solta. Assim o fiz. Segurei o peixe na água enquanto ele parecia se acalmar e parar de se debater. A seguir o soltei e fiquei observando enquanto ele nadava calmamente sumindo para o fundo. Naquele instante senti uma sensação de paz por ter praticado aquele ato. Parece incrível, mas não demorou cinco minutos após termos soltado o badejo e meu pai fisgou um outro peixe, ele que até então não havia pescado nada. Meu pai riu e disse: viu como foi bom termos praticado a boa ação? A partir daí pegamos outro, e outro e mais outros peixes até completarmos uma quantidade considerável. Meu pai disse: agora temos peixe suficiente para nós e para os parentes e amigos. Além disso está começando a ventar, é melhor voltarmos para casa antes que o mar fique agitado. Ao chegarmos à praia meu pai fez questão de contar para todos a minha atitude com relação ao badejo e os peixes que ele e eu pescamos a partir daí. Fiquei todo envaidecido e orgulhoso por ter participado da primeira pescaria com o meu pai. Outras tantas se sucederam e sempre voltávamos com peixe não mais que o suficiente para a nossa alimentação.
 
     Naquela noite eu não conseguia conciliar o sono apesar de cansado pela aventura. A emoção de pescar o primeiro peixe depois, sensibilizado, ter convencido meu pai a soltá-lo e a satisfação daquele peixe ao retornar ao mar. Vencido pelo cansaço lentamente fui adormecendo e só me lembro de ver meu pai entrando no quarto, acariciando meus cabelos e dizendo: boa noite, marinheiro. Boa noite meu filho. Com  um sorriso discreto adormeci de vez.”
 
   Lembranças assim me ajudavam a passar o tempo e me traziam alguma alegria com a qual eu me confortava na situação em que me encontrava. Eu olhava para todos os lados e nada. Nenhum sinal de embarcação ou aeronave. Será que eu seria realmente salvo? Sentado no centro da bóia e sempre tendo o cuidado para não cair ao mar eu procurava dormir para não ver o tempo passar.

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Cônsul POETAS DELMUNDO – Niterói – RJ
Valdir Barreto Ramos
Enviado por Valdir Barreto Ramos em 09/08/2011
Reeditado em 09/08/2011
Código do texto: T3150067
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