ESPERE QUE ELE PASSE PELA PORTA.

Eu estava logo cedo na porta de entrada da penitenciária da cidade para evitar as filas de domingo, mas não visitaria ninguém em especial, como escritor, eu estava lá para capturar histórias e vidas para meus projetos.

Logo depois chega um rapaz forte, queimado de sol, e para atrás de mim , eu o cumprimento e percebo seu semblante triste e ao mesmo tempo ansioso, puxo logo uma conversa e lhe pergunto o que faz ali, e meio envergonhado, me responde que veio buscar seu pai.

Acostumado com essas situações, procuro deixá-lo á vontade, e passo a perguntar sobre sua vida, apenas como um curioso que quer puxar conversa, e talvez por ter guardado essa história por muito tempo, ele se abre comigo e começa a me contar.

Há doze anos seu pai fora preso por ter assassinado três pessoas, a amante, o marido traído e a sua própria esposa.Era uma quarta-feira á noite, sua mãe lhe diz para que espere por ela trancado em seu quarto na pequena casa de um bairro isolado desta mesma cidade, ele tem treze anos, mas está assustado com o que a mãe lhe fala, pois sabe o que acontece no bairro onde mora, assaltos constantes, roubos de botijões de gás, facadas por vingança, tiros para acerto de contas, enfim, um bairro violento como muitos por aí. Deitado em sua cama, ouve gritos de sua mãe na casa vizinha, impropérios, xingamentos e arroubos chamam a sua atenção e destranca a porta e corre pelo quintal sem muros, para ver o que ocorre no vizinho que deixou a mãe tão descontrolada, chega quieto na porta da cozinha e vê seus pais discutindo, e a vizinha, uma moça de mais ou menos vinte e sete anos, acuada no canto da pequena sala do casebre ,enrolada em um lençol, chorando e tentando sair dali. Nesse ínterim, o companheiro da moça do lençol, avisado por amigos, chega ao local embriagado e portando uma arma, que pegara com um amigo de bar e já ameaça à todos, porém como está bêbado , seu pai se aproveita da situação, mais por medo do que por valentia, e se atraca com o ébrio companheiro da moça do lençol e consegue desarmá-lo, porém, me conta o rapaz , que seu pai poderia ter parado por aí e ter ido embora ou feito outra coisa que não o que ele presenciou, nesse instante, o rapaz suspira, e com os olhos aguados gesticula que não quer mais falar. Eu o puxo pelo braço e o levo até uma lanchonete próxima, explicando que como o pai sairá hoje,não precisamos ficar na fila, que por sinal fica muito grande, com muitas crianças e mulheres barulhentas. Ele aceita e me pergunta seu eu não vou entrar muito tarde na penitenciária, e conto o que faço pelo menos uma vez por mês, não só nessa, mas em várias outras instituições, como orfanatos, igrejas, delegacias, qualquer lugar que ajunte uma porção razoável de pessoas me atrai, busco experiências e lembranças que uso para meus escritos modestos, mas que me mantém com um salário de cronista de alguns periódicos de pequenas cidades. Menos emocionado o rapaz que tem por nome Ivanhoé por causa de um gibi do anos 1960 que seu pai lia quando era criança, retorna ao relato, recomeça a narrativa falando de seu pai, um homem instruído, cursou o colegial, mas por infelicidade extrema ficou órfão devido um acidente que vitimou seus pais, morou com tias, tias-avós e toda a sorte de parentalha, até que conheceu a mãe de Ivanhoé, moça humilde e bonita, frequentadora da Igreja da Palavra de Jesus, Ivanhoé acha que a sua concepção foi a primeira e última vez que seus pais se conheceram, biblicamente falando, e talvez por isso o jeito mulherengo de seu pai , que se chama Eros, uma grande ironia eu achei. Trabalhador e caseiro Eros vez por outra demorava-se após o serviço de mestre de obras, chegava tarde, a mãe de Ivanhoé dona

Míriam, sofria calada, orava até que seu marido chegasse e nada falava, desde de que o menino passou a entender alguma coisa essas noites eram assim, seu pai se demorava, sua mãe se apegava ao Livro e se debulhava em lágrimas e lamentos ao Senhor Jesus. O vizinhos da casa eram um homem rude e alcoólatra e uma moça voluptuosa e alegre, com quem sua mãe convivia e suportava apenas, o companheiro mal era visto na casa durante a noite, apenas pelas madrugadas e totalmente embriagado, e quando chegava chutava a porta, quebrava o que restou das noites anteriores e ia dormir. A moça do lençol chamava-se Madalena, outra ironia talvez?, e o companheiro alcoólico era conhecido por Tocha, mas foi batizado como Eliseu. Na fatídica noite, continuou a me contar Ivanhoé a partir do ponto onde a emoção o calou, o que aconteceu foi como a seguir:

Ivanhoé vê seu pai com a arma na mão, Eliseu caído, dona Míriam gritando que o sangue de Jesus tem poder e mandando-o largar o revólver e Madalena no canto da sala com os olhos estalados e de boca aberta tremendo de medo, esse estanque de tempo vem à minha visão como se eu estivesse lá no lugar de Ivanhoé, vivenciando a situação e sentindo seus medos e a sua surpresa pelo que veio na sequencia. Eros aponta a arma para a ameaça mais próxima, que é Míriam, pois de Bíblia nas mãos, invoca o Sangue de Cristo, conta ele, aproxima-se da mulher e atira no Livro, que com um espalhar de papeis e sangue, cai aberto e chamuscado ao lado do corpo já sem vida da mulher, ao se dar conta do que fez, talvez para que tudo se acabe, em seguida atira duas vezes em Eliseu, que o olha com olhos mortos e com lágrimas, ao se ater ao gritos de assassino que Madalena, acuada em seu canto de sala, lhe profere, Eros sem pensar em mais nada, desfigurado, suando e desesperado, para no centro da pequena sala, estira os braços, olha para cima e grita, grita com todo o ar que seus pulmões tem, inspira novamente e atira mais uma vez, e acerta Madalena, seu pequeno amor, segundo ele lhe confessava em seus frêmitos de amor. Olha para a cozinha e vê Ivanhoé parado na porta, olhando medrosamente para seus olhos como a perguntar: para quê tudo isso?, joga a arma no chão e abraça o menino em meio a lágrimas por parte dos dois. Eros implora o perdão do filho, xinga o rival, diz que a culpa disso tudo foi de Míriam, chora, ajoelha, implora pelo deus da falecida esposa, abraça novamente o filho, e em meio a torrente de emoções, cai de bruços e assim fica até que a polícia chega e o leva.

Pergunto agora, depois de uma pausa para acertar os pensamentos, o que ele sentiu durante toda esse infortúnio. Sem derrubar uma lágrima sequer, Ivanhoé levanta os ombros e diz simplesmente que nada sentiu em relação ao pai,m as a falta de sua mãe o acompanha até hoje, Viveu em orfanatos e depois de adolescente passou a morar em abrigos, estudou pouco, mas aprendeu muito com a vida, hoje ganha seu pão com jardinagem e limpeza de piscinas. Somos interrompidos pela sirene da penitenciária que está abrindo suas portas para as visitas. Esperamos que todos entrem e vamos até o portão esperar por Eros, e o que presencio naquele momento me deixa abismado e atônito, de dentro da penitenciária vem um caixão barato de madeira com um papel colado na cabeceira escrito em letras vermelhas “ Sr. Eros da Costa Augusto”. Olho para Ivanhoé e pergunto se ele sabia, e me responde que sim, e que vai enterrá-lo agora com a ajuda da Prefeitura, em uma cova coletiva. Chega o rabecão enquanto tento acertar meus pensamentos, e me disponho a ir com ele até o local do sepultamento, coisa que aceita, e seguimos o carro da Prefeitura em meu veículo, pois penso que ninguém merece ser enterrado apenas pelo coveiro e um só descendente. Ao chegar ao pobre local com poucas cruzes e muitas imagens de santos, vemos a cova rasa aberta em um local próximo à entrada.

O ataúde paupérrimo é aberto, e depois de anos de rememórias e choro, Ivanhoé vê seu pai pela primeira vez. Eu apenas recito em silêncio o padre nosso e aguardo o coveiro para o final daquele ato. Ivanhoé impede o fechamento do caixão e pede um instante ao senhor que deixará seu pai no local de descanso. Tira do bolso um papel, deposita entre os dedos do morto e despede-se de mim com aperto de mão. Fico parado ali olhando Ivanhoé sair do cemitério, vou ao caixão para ver que legado o assassino morto levará de seu filho, e não sei porque não me espanto com o que vejo. Um pedaço de papel chamuscado e manchado de sangue, eu acho, onde consigo ler :

"Confio de vós, no Senhor, que não alimentareis nenhum outro sentimento; mas aquele que vos perturba, seja ele quem for, sofrerá a condenação. Gálatas 5.10

Agradeço ao homem que fecha agora o caixão, saio do cemitério com a sensação de que essa história nunca irá para o papel. Mas nunca é sempre tempo demais.

FABIO ALEX
Enviado por FABIO ALEX em 31/07/2011
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