O Funeral no asfalto

O pianista

É uma manhã triste e nebulosa . Meu corpo atordoado se choca contra os móveis e paredes. Minha visão ofuscada ilumina a angústia que reside dentro de mim. Retorno para o quarto, onde repouso a minha frustração diária. Sobre a cama, lençóis banhados de conhaque, no chão livros, partituras, poemas ultra-românticos e cartas de amor nunca enviadas.

O tédio me anima sempre. Sigo para o banheiro, o espelho logo reflete o meu semblante pífio, a barba crescida me envelhece, minhas mãos de pianista estão mortas. Eu já não consigo tocar Chopin, Mozart... não tenho muitas opções, a vida nunca me contemplou, nunca me ofereceu um sorriso pueril. Fecho e abro os meus olhos baços, minha imagem permanece nítida e intacta no espelho. Meu punho fechado se aquece de ódio. Esfacelo meu reflexo, vejo-me recortado em sete partes. Gotas de sangue escorrem de minha mão, um frenesi me alivia,choro como uma criança e depois analiso minha total decadência.

O tempo me consome, na sala meu piano de teclas empoeiradas e amareladas ocupa o pequeno espaço que me sufoca. Entre as almofadas do sofá surrado meu gato Leôncio me observa com seus olhos azuis graúdos. Detesto ser observado, ainda mais por um gato inútil e preguiçoso como ele.

Eu poderia tocar alguma canção, mas prefiro esquadrinhar a cidade lá fora .Abro a janela, a poluição urbana prejudica a ínfima saúde que me resta. Meu corpo está em ruínas, meu cérebro parece está sendo demolido pelos meus próprios pensamentos.

Desisto de olhar os carros, nego julgar os cidadãos que transitam ranzinzas nesse mundo de concreto infernal. O demônio deve estar aqui hoje, presságios corroem minha mente. Na cozinha acendo um cigarro, derramo vinho português na minha taça de cristal, apanho um estojo de madeira que sempre esteve escondido entre as louças de porcelana da minha antiga esposa. Há um segredo, há um objeto que se oculta, não sei por quê?

Na verdade não penso em nada , a vida é uma lacuna que nunca será preenchida. Sopro fumaça no ar , o cigarro no canto da boca revela a minha entrega ao vício.” Preciso tocar, sim eu vou tocar.

Sento-me diante do piano, deposito meu estojo sobre ele. As teclas estão todas ali, esperando apenas o meu toque. Elas querem e necessitam sentir, gozar a sutileza dos meus dedos atiçando, suscitando as falecidas notas musicais.Deslizo meus finos dedos sobre elas. Uma fruição me arrebata , levando-me ao êxtase .Noturne de Chopin, lembranças dos meus bons tempos de orquestra sinfônica. Eu, o grande pianista , no palco todas as luzes se focalizavam para mim. Aplausos, gritos, momentos de glória que o meu coração se acossa em esquecer.

Apresentação no teatro principal da cidade. O que eu sou hoje? Apenas um fracasso de pessoa, um pianista que se rendeu ao mundo da melancolia e da solidão eterna. Orgias, bebidas, , sonhos inúteis, coração medíocre, arrependimento diário. A música não me consola mais.

O som desafinado do piano ecoa na atmosfera do apartamento. Desiludido bato meus punhos fechados contra as teclas manchando-as de sangue, meus ouvidos doem, meu coração diz adeus. Levanto-me , tenho em minhas mãos o estojo de madeira. Olho ao meu redor, Leôncio ironicamente caminha sinuoso ao meu encontro, tento acaricia-lo, mas , logo o gato recua sua cabeça de pêlos brancos. Ele não gosta de mim, o que isso me importa? Preciso matar o meu mundo.

O vento começa a cantar, a chuva cai mais uma vez...

O gato

Leôncio, que nome mais esdrúxulo meu dono me batizou. Droga! Não suporto mais ouvir essas canções deprimentes que me estouram os ouvidos. Sinto-me um morto, um pedaço do nada.

Minha vida eu dispenso, não me convém ser um gato, não quero mais passar os meus dias bebendo leite aguado e ver as tardes de inverno em almofadas cheirando à naftalina

Desejo o mundo. Não me contento em namorar a cidade de cima de um peitoril do terraço . Cristo sabe muito bem o que eu almejo. Voar! Sim voar, na minha próxima vida direi a Deus e ao diabo que o meu sonho é de ser um pássaro. Posso ser um pardal, um sabiá, uma rolinha.

Nossa! Voar pelos céus nebulosos, percorrer e deslizar no ar. Sim é isso que eu quero . Já não consigo viver com essas quatro patas peludas presas neste chão frio. Rolinha... estou rindo de sarcástico que sou. Afinal, eu, Leôncio sou um gato atroz , durante minha vida já matei cerca de quinze gatos . Meus amores foram poucos , as gatas são todas putas , traidoras, embora eu não seja um santo, um cândido sei que me faltou um grande amor . Levo comigo todo sentimento de desprezo , minhas perversidades me alegram, tornam-me invencível. Tenho remorso, esse constrangimento está alojado em meu viver. . Ontem devorei uma rolinha. Carne apetitosa . Eu deveria ter comido os dois, mesmo porque era um casal de pássaros que havia pousado no peitoril do terraço. Escondi-me entre as garrafas secas de cerveja , contei até cinco e num impulso do meu instinto abocanhei a rolinha .

Não me arrependo do que fiz, mas a rolinha que sobreviveu voltará para pedir vingança. Sou muito forte, não tenho medo, eu a matarei também.

O céu negro de hoje não me agoniza, mas me destrói.

A rolinha sobrevivente

Posso ser uma rolinha , mas não quero ser mais um pássaro. Estou angustiado e tétrico . Meu grande amor foi devorado por um estúpido felino que mora em um terraço sujo repleto de garrafas secas de cerveja. Eu gostaria intensamente de massacrá-lo,, esquartejar sua carne macia e pinçar sem misericórdia cada pêlo seu.

Nada me faz sentido agora, não consigo mais voar , não pretendo visitar Deus . Tenho uma idéia que mudará para sempre tudo que está ao meu redor. Esse meu corpo franzino será lançado no ar, não abrirei as minhas asas, desejo com vigor quebrá-las. A eternidade será o meu refúgio e fortaleza.

A morte me chama, isso é um bom sinal .Pendurado neste galho, digo adeus para as mangueiras. O céu não me seduz. O vento desfaz os meus sonhos.

O último vôo será hoje. Irei cantar para aliviar a dor. Sei , que os meus ossos serão espatifados, meu coração triturado sangrará feito uma cachoeira desaguando em um rio.

A despedida da liberdade é a prisão da alma..

Creio que Deus me dará o seu perdão,isso me satisfaz , mas por enquanto, penso na morte , penso na minha destruição.

A morte

O vento começa a cantar , a chuva pára. Abro solícito o meu estojo de madeira . O segredo se revela, retiro meu punhal de cabo dourado, sua lâmina pontiaguda é um atrativo para o meu ato final.

Estou me despedindo da vida , ergo meu punho esquerdo , observo meus dedos frágeis. O punhal reluz, percorrendo a pele seca de minha mão. Respiro, lágrimas caem, tentam me socorrer do suicídio eminente.

Os meus dias acabaram, a última cena que meus olhos úmidos enxergam é Leôncio pendurado sobre o peitoril do terraço tentando abocanhar a rolinha. Pobre Leôncio! Não acredito no que vejo. Seu corpo desequilibrado o derruba para o nada , mas a rolinha lhe faz companhia , talvez os dois tivessem combinado um encontro com o adeus . Essa foi a morte deles, os ossos de ambos tornaram-se pó, a carne fresca, o sangue inundando o asfalto, isso tudo é maravilhoso. Pessoas caminhando , celebrando felizes o fim de dois animais ordinários como eu.

Penso em escrever o meu fim , firmemente seguro meu punhal, sua ponta amolada de frente para o meu peito não me afugenta.Olho para o piano, sinto dor, uma dor que me contagia, paulatinamente, o punhal se integra ao meu coração. Saudade... minhas pupilas se dilatam, grito, gemo. Estou leve... pareço um anjo nascido de Deus. Feito uma cobra caminho deslizando-me no chão . O punhal permanece enterrado em mim.

Quanto sangue eu perco, estou ferido, morrendo. Cambaleando chego ao peitoril do terraço. Na rua, os corpos de Leôncio e da rolinha.

Abro um sorriso, meus dentes brancos tornaram-se vermelhos. Deus, olhe para mim, jogarei meu corpo porque eu sei, o funeral no asfalto só estará completo com a minha presença.

Ass:mdv-manaus

Mayanna Davila Velame
Enviado por Mayanna Davila Velame em 05/12/2006
Código do texto: T310506
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