O Flagrante
O Flagrante
Ele estava bêbado. A porta, distante. A queda foi iminente. O choro, inesperado. Um pai não pode... simplesmente não pode entrar em casa bêbado, fitar mulher e filhos e dizer-lhes na cara dura: perdi o emprego, bebi e quero dormir. Acordem-me apenas para o jantar.
Eram dez horas da manhã e a sua vida já estava parcialmente arruinada desde aquele instante.
Não, eu não bebi, diria à mulher – o hálito fétido de fome e farra. Ela não vai me acreditar – ele estava bêbado, ela, não. Meu Deus, onde estamos? O que é perder o emprego e chegar em casa às dez horas da manhã, vindo de uma noitada? Que havia de mais nisso? Tinha dinheiro no banco, fome não passariam. Casa própria, bens. Viver exclusivamente para o trabalho lhe trouxe certa folga financeira. O trabalho – e deu de ombros – conseguiria outro. Talvez algo até melhor, sabe-se lá.
Mão à fechadura, tateia a chave. Os olhos pararam imóveis. Ele era vidro por um estante. Dá-se a volta por ele, trezentos e sessenta graus: vidro: imóvel, transparente. Uma réstia de pensamento o transpassa num azul escaldante.
Foi, então, que se deu conta de que não havia chave.
Bateu à porta e aguardou.
...
Bateu à porta e resmungou.
...
Praguejou. Perjurou. Gritou. Xingou. E o chute o fez perceber que a porta não dava a mínima para o piti jocoso de um homem de meia idade cujo suor pingava à testa e o lábio inferior ardia de raiva.
Tentou dar a volta. Ninguém nos fundos. A vizinhança estava quieta.
Na casa da pisca-pisca – epíteto carinhoso dado por ele à vizinha cujo tique nervoso a fazia piscar tão frenética e insistentemente que, por muitas vezes, sentado ao seu lado na igreja, abria os olhos para observá-la rezar de olhos fechados e, mesmo assim, piscando sem parar – pois bem, na sua casa, também não havia ninguém.
Tentou o celular: sem sinal.
Pôs o dedo sobre a aorta, aliviou-se ao sentir a pulsação, foi à frente da casa e lá, parado, sentou-se ao chão. Melhor, depositou-se.
Ele era um saco bagunçado de pensamentos sem sentimentos.
Talvez acariciar o cachorro o trouxesse algum conforto... Mas não havia cachorro, e por um instante ele se viu cachorro. Lambeu a própria mão, o antebraço, e passou as costas da mão no lado da face, de cima para baixo, de cima para baixo. Eu não sou um gato! Pôs-se de quatro e andou rudimentar e grosseiro sobre o gramado: as pernas estiradas e as mãos apoiadas ao chão, sem nenhuma graça, que não era gato. E, quando levantou a perna esquerda em um movimento característico da espécie, se deu conta de que ainda havia limites, mesmo naquele estado deprimente.
Sentou-se uma vez mais. Desta vez com o tronco ereto sobre os pés de cócoras, as mãos caídas frente ao peito. Absteve-se de por a língua de fora. Ficou nessa posição por cerca de cinco minutos. Mais uma vez ele era vidro: imóvel, transparente, e agora, vejam só: cristalino. Um outro lapso mental atravessou-lhe a mente: este era roxo-acinzentado.
O pensamento foi tão invasivo que se pegou surpreso prestes a latir. Observou as próprias mãos: lamentou-se. A recomposição foi imediata.
Agora ereto, mãos ao queixo... o pensamento distante. O problema é que ele estava ali, mas ele nunca se encontrou.
Que tolice! Amanhã mesmo arranjo um cachorro pra esta casa. Vai morar ali no jardim: as piores casas para os cachorros; vai comer o que me sobrar a mim e a minha família: cachorros que comam restos; virá quando e sempre que eu o chamar: cachorros são subordinados; me fará companhia e me prestará lealdade em troca de toda essa miséria: é o que os cachorros merecem!
Mais uma vez ele foi vidro. Mais uma vez translucidez. E para não ser obvio, desta vez vieram-lhe dois fios de pensamento: um, bege, tão claro e neutro, que era difícil percebê-lo; o outro, vermelho-vivo.
O bege, devido a sua sutileza, não o chamou muito a atenção. Gerou algo como: essa história de cachorro não vai me levar a nada e... – parecia sua mulher: prática e imediata: se não traz lucro, descarta.
O vermelho-vivo, esse ele agarrou, e neste se demorou, apesar de seu pequeno comprimento. Dizia assim: eu sou um cachorro.
O homem olhou para as mãos mais uma vez, e se viu cachorro; cheirou a mãos, e se cheirou cachorro, lambeu-as, e se sentiu cachorro.
Caminhou resoluta e calmamente até o carro. Vinte e nove anos de dedicação a uma empresa, bom salário e contas quites dão um bom montante. Era um osso para ser roído contidamente por mais dez anos. Se bem investido, renderia a vida inteira.
Pois bem, o osso, levou-o ao jardim; o pôs no chão; arregaçou as mangas e simplesmente cavou, como se era esperado.
Mais uma vez, cheirou o osso, lambeu-o, acariciou-o e o sepultou na cova rasa que foi coberta por uma pequena camada de terra e bem calcada com os pés, digo, patas.
Voltou à frente da casa. Pôs-se na posição que lhe era própria devido à condição e esperou.
As horas passavam e o sol escaldava: ele esperava.
Veio a chuva, encharcando-o dos pés à cabeça: ele esperava.
Mais uma vez o sol, agora ameno. Tão ameno que sequer secou suas roupas.
Ele estava empapado ao sol de pouca luz e sem calor. As mãos já adormeciam, os pés há muito o haviam deixado, a coluna estava rígida, de maneira que era melhor nem tentar movê-la. Não sobrou mais nada. E para não se dar por derrotado, pôs a língua de fora. O sol na língua era algo que nunca houvera experimentado. Era bom, só que a saliva secava e dava mais sede...
Experimentou a sede, por não haver água. E ao contrariar a sua fartura – pois nunca sentira sede na vida – chorou. Ele era tão completo que produzia sua própria água, mesmo que salgada.
Noite alta. A mulher chegou. Estacionou o carro na garage. Passou por ele, que se manteve imóvel, e nada falou. O homem mais uma vez tocou a aorta: pulsava... Ela subitamente voltou, pôs-se ao lado do marido e olhou-o: o que foi agora? Ele soergueu-lhe os grandes olhos arredondados numa tristeza lamuriosa, mendicante. Ela foi à porta, abriu-a e apontou para o interior da casa. De quatro, ele obedeceu.
Sentada ao sofá, a mulher o chamou para junto de si. Ele a obedeceu. Sentou-se com o tronco ereto ao lado dela e olhou para cima, os olhos lacrimavam. Ela pôs a cara dele entre suas pernas e aguardou. Após o previsível, colocou-se de quatro no chão. Ele a cobriu. Terminado o ato: perdi o emprego. Investiremos o que recebeste em um negócio próprio. Não recebi, foi justa causa. Qual a causa? Desvios, você sabe; sorte de eu não ser preso. Sorte de quem? – foi ácida. Nossa. E que sorte eu posso ter em recebê-lo endividado, molhado, velho e com o nome sujo no mercado? Três orgasmos não são o suficiente? Ela mostrou-lhe o dedo médio da mão direita. E os nossos filhos? Se arranjam, são todos crescidos. E você pretende ir embora quando? Eu não pretendo ir embora. Mas eu pretendo que você vá. Assim, secamente?
No banheiro, ela apalpou os seios fartos com ambas as mãos em frente ao espelho, lambeu-lhes o mamilo. Foi para o quarto, não quis se lavar.
Ele, deitado ao tapete, mais uma vez tornou-se vidro e agarrou o primeiro pensamento que lhe veio. Este era verde, alegre e faiscante.
Executou-o.
No meio da noite, beijou-a a face, deixou uma carta.
“Fui despedido sim, mas não por justa causa. Cheguei em casa pela manhã, ninguém à vista, porta cerrada. Fui ao quintal, o mesmo. Parei. Esperei. Me senti cachorro. Me provei cachorro. Enterrei o osso. Papei o bofe surrado por outros dentes. Engoli o vômito. Escrevi uma carta. Mostrei os dentes de satisfação. Lambi o pelo. Deixei-o lustroso. E fui viver!”
Ele sabia que sua mulher tinha amantes. Sabia que ela era tão cachorra quanto ele. A vida de cachorro com certeza seria boa, ele nascera pra isso. Mas ele queria ser gato, gatão-de-meia-idade.
Hylo Leal, dezembro de 2009.