Então vou
É neste desencontro casual que, por um momento, estremeço ao encontrar um esboço do que sou feito - de restos movediços, de instabilidade crepuscular e ausência nítida. É neste momento que grito a mim mesmo a fome do humano sentimento, do ser heróico que se sobreleva nos altares poluídos da existência, na cachoeira intermitente que é o gozo humano - a inverossímil lógica de possuir, em essência, o outro.
Falta-me a estabilidade dos pés, por isso é que tenho o hábito de comprar sempre sapatos novos e lustrados, para angariar um fundo de terra, um pedaço que posso chamar de meu, de simetria e ordem onde pisar a pata ferina do humano selvagem em terra firme. É o contato íntimo com a vida, a líquida estabilidade corrompida. É neste desencontro de possibilidades, na anuência votiva dos instáveis, que exerço a função criadora de toda uma vida dedicada a absorção do silêncio - é o veículo da minha trajetória em deserto supremo orientado por uma busca racionalmente animalesca, o objetivo da vida em estado de angústia e sopro.
E porque, também, a estória dos indivíduos oscila entre a transparência e o ferimento das máscaras enquanto seres que representam papéis de horrível tessitura íntima.
Mas por esta noite hei de atravessar mais um século de solidão sozinho, corrompido em luz e em sonho diáfano ante o universo líquido da minha voz – eu quero, ora em vez, e sempre, a responsabilidade de exaurir-me diante do inefável encontro com o secreto estúpido dos opostos – eu quero a retórica falida em comunhão com o discurso de minha própria cadeia desconexa, sem a misericórdia de Deus.
Vou tateando um abismo de lutas áridas, de saudade remota que fica cristalizada nos crespos de nós. Quero um único momento em que minha vida se dilatará de tal forma, de tamanho e espessura inimagináveis que um simples sopro gélido – de finíssima agulha incrustada na pele – há de romper o ser e o veículo de manifestação do coração. Todos nós estamos em estado de solidão, à procura de uma fome de contato ou uma carência de espaço, uns esboços de carinho, um remédio para a falta de sentido imediato. Nós estamos em luta pelo abandono desde o começo do século.
Agora que a chuva cessou, o inverno está tão próximo que é como se pudesse tocá-lo com as mãos e os nervos íngremes de minha existência. Adentrar-se no frio, na gélida camada superposta de escombros mais ou menos sociais, no intrincado gesto de superação e espanto, sangue e mel. É abril e os morangos estão à espera de uma fome e um bolor estranhos. É outono e é azul as tardes em que me deito ao comprido lembrando em silêncio as manhãs mais ou menos oblíquas, os olhos em completo esquecimento, a urdidura extremosa do que viria, anos mais tarde, ser o meu ‘eu’ em comunhão com a fluidez nítida dos contornos obsessivos. E este inverno intermitente, esse casual modo de ver sem sentir, sem aproximação real, mas apenas veículos informes, esboços esquálidos, criaturas exangues vestidas e cumprindo sua rotina arfante e impiedosa, este inverno é minha súplica e grito diante da boca oca do Deus.
Penso sempre: e agora, meu Deus? O que é, exatamente, “O Deus”? Diante da angústia, deste caos mais ou menos organizado, vislumbro o ser onipotente traçando em luz retilínea um destino humano – é o extremo de sua capacidade em verossimilhança e repúdio. A carne torna-se putrefata, é verdade, mas a ideia fixa-se entre os homens e atravessa os tempos com o calor do conhecimento. Eu estou só, santo Deus, eu me sinto tão-só. E não há nenhum reduto humano que possa me aninhar em frescor e refrigério, o espírito indelével em contínua metamorfose de possibilidades.
Até porque os restos de mim são tão humanos e sensíveis.
A história é a seguinte: não há princípio correto, começo viável, vislumbre altivo. Só há lembranças de como fui criado: na inclusão dos meus pais, no fanatismo de minha dupla jornada em busca do sagrado. Sempre soube: fui solidão em terreno alheio. Sempre soube: minha alma pesa-me tanto quanto um fardo de litígios e expiações. Sempre soube: os homens estão separados entre si por um espaço sem amor, esse amor feroz que amortalha as criaturas, que inviabiliza o encontro.
Então vou – é esse meu destino sem precedentes, é essa minha escolha pessoal: ir como se vai em espasmo e abandono, como se esquecesse de mim o que sempre fui. Vou em estado de absoluta transcendência, em caótica simetria de inversos, em sintonia com o ínfimo contato humano – vou como se quem morre em eternidade de agora. Vou como se ir fosse minha única chance de superar a mim mesmo. E é.