Dissonância

No alto daquela vida, a história se repetiria sempre, com leve granular de inconsciência volúvel e inconstância. Era sua própria estória pessoal, construída então com o torpor embriagável dos que têm sede de angústia – dos que possuem a fome e sua capacidade dócil de devorar a si mesmo. Era uma história de luta e desespero – o tranquilo desespero dos que resistem à chama do destino.

Pois chamaria para perto de si os contornos mais afastados da realidade: pois chamaria para dentro de si um clamor de instabilidade orgânica, uma misericórdia virulenta e impessoal, um rancor sedoso no qual pudesse, enfim, organizar-se como criatura perecível e inteiramente sôfrega. O limite de seu ser era um afastamento de dentro de si, um constatado de violência afetiva.

E é essa violência – ah! a violência daquilo que não possui vingança – que talvez fosse seu ponto mestre de equilíbrio, sua necessidade de conservar-se como um humano entregue à punição de suas escolhas pessoais. É a violência de quem já abdicou de tudo o resto, de todo o contacto sereno e passivo, e vive então em estado de sutileza etérea.

Mas a vida, dizia a si mesmo, a vida é sempre muito provisória, e é impossível o meio termo, o ódio encarapuçado na cara das outras pessoas, os resíduos estúpidos do que fora um dia afeto e carência, o machucado aberto de dor na antiguidade pelo Cristo, mas a vida era de um inofensivo aterrador – mas a vida era urgente e necessariamente caótica, na organização estranha e crepuscular dos indivíduos.

Então como possuir o filamento exato do destino que escorre, líquido, em nossas mãos? Como possuir o estático movimento do universo em constante dissonância, como possuir o segredo da existência restituída quem sabe à originalidade ancestral de uma vida nômade e perecível? Como averiguar sua inocência diante de um mundo que cumpre seu triste ofício de indulgência e câncer, seu lastimável fardo carregado pelos seres a duras farpas, na hedionda cicatriz de cada um de nós? O instante de lucidez seria, então, uma punição àqueles que humildemente resistem à essência constelar, ao milagre de possuir a arquitetura de Deus nas entrelinhas dos acasos, das reticências e das improbabilidades. Mas também isso não era importante.

O oculto em nós transfigurara-se: o culto ao hermético é revestido de curiosa simetria: o amor é um espaço de solidão constituída: o amor é constatação de solidão absoluta entre duas pessoas – é esse o maior segredo – o de possuir, em essência, o termo de sua própria trajetória rumo ao desconhecido de si mesmo: rumo ao abismo sutil de sua vida que, vaga e impermeável, vai atingir em estado lúgubre as margens de um mergulho intenso na desmemoriada centelha divina. A vida é, na verdade, um erro de impossível acerto e no qual não se chega nunca ao termo exato: a vida é ilícita e incólume.

Hoje, pois, já é tarde. O céu está de um cinza inviolável, as cristalizações tornaram-se crestas e pontas agudíssimas de violência gratuita. O mar em frente carrega em si noções de melancolia e abandono, rigor e agressão. E o universo tornou-se uma transgressão perigosa. Já é tão tarde e longe e cego e inalcançável e o fruto em nossas mãos está mofado. No alto daquela vida, a história se repetiria sempre. Sempre a nota dissonante no segredo do coração.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 18/07/2011
Reeditado em 29/06/2014
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