UM GRITO NA NOITE

Não foi exatamente um grito de dor, porém algo muito mais apavorante e profundo como se originado das entranhas escuras e misteriosas de cavernas sinistras, de gargantas préhistóricas. Um verdadeiro clamor em alto e bom som, muito além dum berro emitido por algum animal aterrorizado, talvez, ou por um homem atormentado. E se deu ali, bem no meio da noite silenciosa, enquanto todos dormiam o sono do justo em solene paz. Ou quase todos, porque eu estava atento às palavras cruzadas que tentava resolver a qualquer custo, os olhos pregados na sequência das palavras e das questões apresentadas, o coração palpitando acelerado, arrebatado pela emoção de descobrir no recôndito de meus arquivos memoriais as respostas procuradas.

O som agudo e cortante arrepiou-me os cabelos, tremi dos pés à cabeça, quase me pula fora o coração, minha boca secou, os olhos espicharam desmesurados na direção da janela entreaberta para onde pretendia me dirigir não sem antes apagar a luz e permanecer em estático silêncio para fugir do terror causado pelo grito, o berro sinistro, o brado animal ou qualquer coisa inusitada naquele momento inesperado da quietude noturna. No entanto, as pernas não me obedeciam e pesavam-me mais que chumbo, tornou-se-me impossível levantar da cadeira e seguir minha vontade. O cérebro já não comandava meus membros, eu estava completamente atordoado, entorpecido, tremendo como somente o fazem as folhas das árvores quando a brisa sopra com mais intensidade e quase as arranca dos galhos também tremulantes.

O macabro barulho não se repetiu, o silêncio voltou de súbito a reinar sob o céu estrelado e ante o olhar imperturbável da lua, tão de repente como a emissão inesperada do grito diabólico e perturbador. Inerte na minha posição forçada pelo medo dominador, ainda esperei a subseqüência dos acontecimentos, outros roufenhos clamores, palavras desafiadoras ou amedrontadas, afinal de contas um ruído estremecedor como aquele nunca vem sozinho, jamais quebra o bom comportamento da noite sem trazer consigo outros tantos momentos de angústia, desespero, balas deflagradas, pancadaria, corre-corre, estripulias, passos apressados. Nada disso, contudo, veio a acontecer no decorrer dos minutos que se passaram enquanto meus nervos afloravam à pele como se fossem explodir de alguma maneira amargurante.

Nenhum outro barulho tão semelhante ao que acordou as estrelas voltou a brotar, nada mais, nem mesmo o mínimo som dos grilos, dos cães em derredor, nenhum coaxar, um mero arrastar de baratas arrastando as patas não se ouviu, até mesmo o silêncio, apavorado, silenciou. E continuou inexplicável, enlouquecedor, a um só tempo tranqüilo e aterrorizante, pacífico e brutamontes, sereno e horripilante. A pouco e pouco meus tremores se tornaram inquietude, a surpresa, pasmo, o temor, horror, a incerteza, estranheza, o tudo, nada. Agora, nas pernas antes sobrecarregadas por insuportáveis toneladas trazidas com a emoção, surgia um intolerante amolecimento, um não sei quê de moleza, um desejo lacerante de fugir. A janela prosseguia aberta, não havia mais grito, as estrelas voltaram a dormir, a lua bocejou entediada, o céu enroscou-se nas poucas nuvens e parecia que nunca houvera qualquer instante de abalo naquela quase madrugada.

Consegui levantar-me, meio trôpego como um bêbado descontrolado, obriguei-me a cerrar a janela com os cabelos da cabeça em pé, apaguei a luz, pensando, matutando, sem coragem de olhar as paragens abaixo do meu apartamento. De onde viera tamanho grito ensurdecedor e aterrador? O que o motivara? Ou simplesmente teria eu sonhado enquanto escrevia as palavras nos quadradinhos da revista de cruzadas? Teria alguém sido cruelmente assassinado após regurgitar do seu mais íntimo o tal brado de terror? Viria de minha própria alma, de meu coração, de minhas mais escondidas e fechadas memórias a estupidez desse esgoelar repentino?

Ouvi ou não escutei a tal explosão vocal oriunda sabe-se lá de onde? Não sei, infelizmente jamais soube o que realmente aconteceu. O grito, sim, certamente o ouvi aguçado e límpido, se de ser humano ou animal, se de ave ou inseto não logrei concluir. E ele permaneceria indelével em minha mente por meses e anos, malgrado no dia seguinte ninguém mais ter tomado ciência dele, nada de rastro de morte nem fato estranho se descobriu ou manifestou. Aparentemente só eu o testemunhei. Teria sido apenas minha imaginação ou algo muito além do nosso vão conhecimento humano? Não sei responder, mas eu o ouvi sim naquela noite distante, num tempo ainda acordado nos arquivos de minha memória.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 16/07/2011
Código do texto: T3098226
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