REBELDIA NA LITERATURA
Há personagens que são um porre... Exemplos não faltam:
Era tarde já. Coisa de onze horas, ou mais.
Tudo estava tranqüilo. Parado demais. Tão quieto que dava até para desconfiar. Podia-se comparar à calmaria que precede a tempestade.
Aquela tranquilidade parecia estar com os minutos contados. E realmente estava.
Como disse, era tarde, e eu nada tinha para fazer naquele fim de noite. Certeza achei não ia acontecer nada de especial. Engano meu. E que engano!
Desiludiu-me prontamente o soar peremptório do telefone. O ruído entrou-me pela orelha abaixo, rasgando.
Tive um pressentimento mau. Não sei porque.
Apanhei o fone, mecanicamente.
— Pronto. — Falei, enquanto me acomodava junto ao aparelho.
— Socorro! — Gritou alguém do outro lado. Alguém que não pude identificar ainda pela voz.
— Quem é? Quem é? — Falei, atônito, aturdido.
— Sou eu, o Tomás. — A resposta veio ofegante, gaguejada.
— O que foi? Qual é o problema? Fala! Fala! — Foi minha resposta imediata.
— Tô sendo ameaçado! Socorro!
— Quem é que tá te ameaçando? Ameaçando de quê? Explica. Que diabo que tá acontecendo aí?
— É o Zezão! Zezão quer me matar! Tá rodeando a casa! Socorro!
— Que Zezão? Quem é esse sujeito?!
— É uma personagem do meu conto. Lembra que te falei que eu ia escrever um conto? Pois é, já comecei. E agora deu nisso...
Bati o telefone na cara dele. Onde já se viu brincadeira mais cretina? Que palhaçada. Enfiei a cara no travesseiro, achei o sono perdido.
Pela manhã fui a casa dele a fim de tirar satisfação. Mas não o encontrei. Estava no hospital. Todo quebrado, furado e esbofeteado, segundo os vizinhos me disseram. “ Escapou por pouco.”
A porta da casa tinha sido despedaçada. Parecia ter sofrido golpes de machado, facão, foice ou coisa que o valha. E dentro, tudo revirado como por um tufão americano.
Fui vê-lo no hospital. O coitado mal conseguia falar.
— Mas o que foi que houve? foi assalto? alguma vingança? agiota? marido traído? — perguntei, ao chegar.
— Nada disso. Foi o Zezão. Lembra que te pedi socorro? — disse ele vagarosamente.
O pobre ainda delirava, pensei.
Dias antes, Tomás tinha-me falado que ia escrever alguma coisa, um conto, novela... Sei lá.
Supus que ele, de tão concentrado em escrever a história, passou a confundir realidade e ficção. Cuidei que idear um conto era coisa acima de suas possibilidades mentais. Para mim, o juízo lhe começara a falhar.
Isso foi o que imaginei, contudo, o caso era outro.
Tomás recuperou-se no hospital. Coisa de cinco semanas.
Voltou para casa. Tornou a escrever o tal conto. Tentei dissuadi-lo. Mas foi tempo perdido.
O mais intrigante era que ele insistia na conversa de que tinha sido atacado por uma de suas personagens. Onde já se viu?
Era preciso eu compreender aquela loucura toda. Fingi, portanto, acreditar que Zezão (a personagem) o havia agredido naquela noite.
— Mas escuta. Zezão não diz porque resolveu sair do conto e agredir você? — perguntei, simulando seriedade.
— Disse, claro. Ele quer que eu lhe dê qualidades, que o faça inteligente, elegante, bonito. Que se modifique inteiramente a história a fim de dar a ele um destino feliz. Só que não vou mudar nada. A história é minha. Eu a escrevo como quiser. Ele é só uma personagem criada por mim. Terá que existir do modo como eu
decidir. E ponto final.
— E você disse tudo isso a ele, assim na lata?
— Disse. Em seguida expulsei-o de minha casa. Ele saiu jurando vingança. À noite, voltou, arrombou a porta, quebrou tudo e quase me mata, como você viu.
Concluí que o caso era gravíssimo. Como Tomás podia ainda estar à solta por aí?
Certa vez um velho me dissera: “ A pior coisa nos loucos é precisamente o fato de eles pensarem que não são loucos.”
A frase cabia perfeitamente no caso de Tomás, pensei.
Temi que a “loucura” atingisse estágios piores, mas não podia fazer muita coisa, a não ser ir ter com ele todos os dias. Fui embora tencionando voltar dia seguinte.
À noite, porém, mais uma vez tive aquele mau pressentimento. E de novo o ruído do telefone me deixou um tanto apreensivo. Corri a atender já adivinhando o que seria.
— Pois não. — Falei, antevendo um pedido por socorro.
Era Tomás, histérico.
— Zezão tá aqui! Zezão tá aqui! Corre! Depressa! — Gritou ele, em tom insano, parecendo uma velha que viu uma barata.
— Já vou! Calma! Tenha calma!
Disse isso e saí imediato. Por sorte, mal tinha saído à rua, vi um táxi, que parou a um sinal meu. Em coisa de dez minutos eu já estava em frente à casa de Tomás. A porta estava aberta. Entrei. Ninguém na sala. Fui entrando, meio assustado, mas fui. Ao chegar à cozinha, deparei com uma cena de estarrecer qualquer um: Tomás, atrás duma mesa, esquivando-se de um sujeito que tentava atingi-lo.
O estranho tinha nas mãos faca e punhal.
Por todos os meios o sujeito queria golpear Tomás. Este se esquivava, sempre rodeando a grande mesa. Peguei logo uma cadeira e arremessei-a contra o estranho. Ele livrou-se esquivando. Partiu para ferir-me.
Eu, por minha vez, pus-me ao redor da mesa, à semelhança de Tomás, que não podia fugir. O sujeito tinha tomado a única saída. Apanhei outra das quatro cadeiras. Não a atirei. Mantive-a nas mãos.
O estranho já se impacientava com aquela ciranda ao redor da mesa. Notei que breve ele tentaria um golpe mais ousado. Tentou, contra mim. Eu, porém, livrei-me do punhal. E quebrei-lhe a cadeira na cabeça.
O infeliz caiu desacordado.
Amarramo-lo bem amarrado, preso à cadeira, e aguardamos que despertasse.
— Será que o matei? — falei, enquanto Tomás apertava os últimos nós.
— Ele não morre. Não é real. — Disse Tomás estranhamente.
Como o sujeito demorasse para recobrar sentidos, atiramos sobre ele um balde d’água fria. Aos poucos foi acordando.
— Vamos chamar a polícia. — Sugeri, pensando tratar-se de um marginal.
— Não! — Acudiu Tomás — Esse aí não é bandido coisa nenhuma. É o Zezão, minha personagem. Pode acreditar. É verdade verdadeira.
— Xi, lá vem você de novo com essa maluquice!
Nisto, o estranho tinha despertado totalmente. Em vão esforçava por livrar-se das cordas que o prendiam forte. Dei-lhe um safanão.
— Parado aí, cara. — Ordenei.
— Não se meta. Isso não é da sua conta. — Advertiu-me o estranho, em tom de ameaça.
Ameacei-o também com a polícia. Ao que o sujeito respondeu:
— Não tô nem aí pra sua polícia. Ela nada pode contra mim. Não sou real, sou apenas uma personagem. Só existo na imaginação. Pode chamar a sua polícia, se quiser.
Os vizinhos que tinham ouvido o barulho da confusão correram para a casa de Tomás e foram até a cozinha, onde estávamos nós três. Porém, logo que puseram os pés na casa, ocorreu um fenômeno no mínimo intrigante: Zezão, aquele sujeito colossal, ali bem amarrado, começou a desaparecer no ar como fumaça, diante de nossos olhos.
— Tá vendo? Acredita agora? Ninguém pode vê-lo. Somente eu e você. — Cochichou-me Tomás, enquanto Zezão evaporava.
Tomei do conto e qual não foi minha surpresa quando vi que a descrição de Zezão ali feita coincidia rigorosamente com o sujeito que tínhamos amarrado. A mesma barba cheia, o cabelo revolto, o olhar mau, o corpo robusto e disforme, o desleixo no trajar. Tudo, em pormenores, ali descrito.
Não havia dúvida. Era o Zezão do conto.
A personagem, como não se explica, tinha mesmo saído da história e andava ameaçando seu autor na vida real. A Literatura só deve explicações a si mesma.
Contudo, ainda havia algo que não me caía bem na cachola.
Tratei, pois, de esclarecer como pude; ou quase:
— Mas, por que é que só eu e você podemos vê-lo, e mais ninguém?
Tomás refletiu, matutou, pensou e, ao cabo de alguns minutos, disse, sem muita convicção:
— Ora, Zezão nasceu da imaginação, certo?
— Certo. E daí?
— Pois então. Você também às vezes cria personagens. Nós temos imaginação suficiente para vê-lo. Como os meus vizinhos parece que não têm tanta imaginação assim, não podem vê-lo. Não parece lógico?
A explicação me pareceu boa. Não digo razoável porque nada podia ser considerado como tal naquela história toda.
Cuidei que eu também tinha pirado. Talvez um novo tipo de maluquice ainda não catalogada e, pelo visto, contagiosa. Afinal, pensei, tudo tem seu limite, até mesmo a imaginação. Mas será que é assim mesmo?
Tudo bem que eu já tive alguns personagens xaropes. Lembro-me de um que invadia descaradamente meus sonhos. Eu não podia tirar o menor cochilo que lá estava o velhote a me importunar com suas reivindicações. Mandei-o no capítulo seguinte para o norte da África onde um leão vesgo se encarregou dele.
Não que se queira pretender que personagens sejam seres artificiais ou sem vontade própria, tampouco sejam meros marionetes ao sabor dos desejos de seu autor. Mas também, tudo sem exageros, senão vira bagunça.
Invadir sonhos, xaropar o pensamento, vá lá; agora sair no tapa, lá isso não. Nunca me aconteceu. Os personagens estão cada vez mais abusados.
Estávamos nisso. Tomás persistiu escrevendo o tal conto. Não me dava ouvidos quando lhe pedia que queimasse os papéis e começasse a idear outra história. Ele estava resoluto. Diante disso, deixei-o fazer o que quisesse. Fui-me embora.
Nessa mesma noite, tive outro aborrecimento.
Outro telefonema apavorado de Tomás me fez sair às pressas e mais uma vez deparei com Zezão a ameaçá-lo de morte. Estavam na sala. Zezão apontava uma cano curto bem para a cabeça de Tomás, que se achava no sofá. Vi isto do lado de fora, pela vidraça. Eles não me viram.
Entrei por uma janela nos fundos da casa. Na biblioteca, encontrei os papéis do tal conto. Tomei de uma caneta e comecei a resolver tudo.
Resolver tudo como uma simples caneta e uns papéis?
E olhe que foi fácil, banal até.
Tendo encontrado a descrição do revólver de Zezão, alterei-a com um problema no gatilho.
Nas mãos, conto e caneta, fui até a sala. Zezão, ao me ver, ameaçou:
— Parado aí, senão meto uma bala nesse babaca.
Não obedeci. Continuei me aproximando, confiante.
— Atire! Pode atirar. — Desafiei.
— Ficou maluco?! — Gritou Tomás, apavorado.
Zezão puxou o gatilho. A bala não saiu.
— Vai, atira de novo. — Mandei.
Ele puxou mais uma vez o gatilho. E outra. E mais outra. Nada. O tiro não queria sair.
— O que que tá acontecendo aqui? Eu mato os dois, hein! Tô avisando! — Falou Zezão, baratinado.
— Mata nada. Você não é de nada. Você não mata ninguém.
Zezão ficou atônito diante da minha segurança. Tudo lhe era incompreensível. Ainda assim, tentou me golpear com a faca. Eu, porém, rapidamente, peguei da caneta e do conto com firmeza e lhe impus um adjetivo: reumático.
Tão logo terminei de grafar o adjetivo na frente de seu nome, Zezão caiu. Contorcia-se em dores.
Tomei dele as armas. Joguei-as pela janela.
Risquei então o adjetivo.
Livre da dores, Zezão ergueu-se. Mas não compreendia ainda.
Imóvel, petrificado, Tomás assistia a tudo.
— Que mandinga é essa? — Perguntou-me Zezão, atordoado, confuso.
Ele não compreendia que, sendo personagem de história fictícia, estava sujeito ao que deliberasse o escrevente. Tentei explicar-lhe isto, mas...
— Não me venha com essa tapeação! — Explodiu ele, já partindo para esmurrar-me.
Lancei mão de outro adjetivo: cego. No mesmo instante faltou-lhe a luz nos olhos. Atirou-se sobre os móveis. Caiu no chão. E permaneceu ali até que eu risquei o adjetivo. Ainda assim, não estava convencido.
Era preciso convencê-lo de qualquer maneira. E para tanto tive que recorrer ao inusitado.
Fi-lo ficar gordo, tão gordo que não passaria pela porta.
Depois tornei-o magro que os ossos por pouco não lhe furavam a pele. Deixei-o careca. Arranquei-lhe uma perna. Repus a perna. Trajei-o de palhaço...
Após tudo isso, tornei-o ao normal, isto é, do modo como Tomás o havia descrito originalmente.
Quem pensaria que uma caneta banal...?
Entretanto, a inteligência que seu autor lhe dera não era mesmo das melhores. Zezão ainda duvidava dos poderes da caneta. Teimava de pés juntos que não voltaria à história sem ter suas reivindicações atendidas.
Não tive alternativa. Radicalizei geral. Ameacei-o de morte.
— Volta ou não volta? Olhe que eu te mato. — Dei-lhe o ultimato, erguendo a caneta e o papel.
Zezão permaneceu rebelde. Não acreditava ainda que eu podia de fato matá-lo. Melhor dizendo: não queria acreditar.
Ajeitei a caneta entre os dedos. Ele estremeceu. Vi nos seus olhos o medo. Neste instante, quase tive pena dele, mas mantive a firmeza. Grafei outro adjetivo: cardiopático. Zezão desabou no chão agonizando de dores no peito e falta de ar.
— Volta ou não volta?
Uns instantes mais, e ele não suportaria.
— Não! — Gemeu ele.
Recorri a outra canetada: crise terminal.
O estado dele se agravou imediato. Morreria em segundos.
— E agora? — Falei.
— Tá certo! Você venceu! Eu desisto! Mas pare com isso, por Deus! — Tentou dizer isto num grito, porém só saiu um gemido quase inaudível, tartamudeado.
Num traço de caneta, livrei-o da dor no coração.
Zezão ergueu-se do chão onde se debatia. E naquele mesmo instante desapareceu no ar, voltando às páginas de Tomás.
Tudo estava terminado afinal.
Hoje, anos mais tarde, quando reflito acerca daquela história incrível, chego quase a me arrepender de haver me intrometido num assunto tão particular entre um autor e sua personagem.
Afinal, se Zezão conseguira invadir a realidade, muito provável é que seu autor não tinha certeza sobre o destino que lhe daria. Que minhas personagens não me ouçam.
Todavia, foi o próprio Tomás quem pediu minha interferência, pois havia perdido o controle sobre a situação. Falta de experiência.
Ainda assim, acho que nunca terei certeza se agi certo ou não.
Pobre Zezão! Só queria um destino feliz.
Mas que se há de fazer agora?
Tarde demais. O livro de Tomás já foi publicado. Era tarde já... Tarde?
O telefone está chamando, daquele mesmo modo. Vou atender...