ANONIMATO DO SER - republicação

Havia um sonho.

Não era um qualquer sonho. Era mais. Tão diferente dos demais sonhos. Um sonho nunca antes sonhado. Dir-se-ia um sonho acordado. Jamais revelado a ninguém.

Havia um sonho:

Sonhar todos os sonhos. Saber todas as coisas.

E de tudo quanto houvesse de secreto ou de misterioso ter a consciência exata, absoluta. Acerca do mar e das estrelas o que ninguém soubesse ou desejasse saber.

Havia um desejo:

Dormir todas as noites. Colher todas as chuvas. Do orvalho quente embeber-se inteiro. Molhar o corpo seco da vida áspera.

Ambicioso era o sonho.

Queria tudo, mormente a compreensão daquilo que ninguém compreendia nem ousava compreender.

E esse tudo incluía também o nada, aquele nada que provável existira antes do antes e de todos os antes, imagináveis ou não.

Havia um abismo:

Escuro. Imperscrutável.

Queria precipitar-se nele como num mar. Acender-lhe as luzes. Sondar o insondável. Desvendar-lhe os segredos todos.

Dominá-lo.

Havia um querer:

Todos os sons. As cores todas. Cantar todas as canções. Viajar todos os mundos do seu mundo e de outros mundos em que ninguém pensava.

Era um sonho pretensioso demais.

Nem sabia se era direito sonhar tão longe.

Porém, ia mais alto em sua quimera desmedida.

Havia um medo:

Que além da sepultura só houvesse o pó. O mesmo pó anônimo que as enxurradas anonimamente carregam para os rios.

Havia o horror de que além daqueles jazigos brancos no cemitério houvesse apenas um vazio e silencioso nada. Não, não podia ser assim. Impossível. Possível o medo? Mas havia um medo. Medo anônimo.

Uma dúvida havia:

Deus.

Deus? Seria que Ele existia? E como? E onde? E desde quando? E até quando?

Seria que Ele estava nas chuvas que lavam o mundo e as frontes pensativas? Podia estar lá. Podia ser as colinas e os horizontes. Quem sabe não estivesse além dos jazigos do cemitério, a espera dos que crêem e dos que não. Dizer-lhes não terem a esperá-los apenas o vazio e silencioso nada.

Talvez Ele fosse o tudo. Estivesse em tudo. E até naquele nada, aquele antes de todos os antes, imagináveis ou não.

Deus podia estar mesmo na sua dúvida. Dúvida ou desejo?

Havia um querer:

Compreender.

Havia uma palavra:

Errar. Seria um erro duvidar? Sonhar tão longe?

Seria um sonho uma afronta? Pretensão descabida?

Como sabê-lo se não sabia nada?

Havia uma certeza:

Haveria de morrer. O sonho estaria findo. O desejo não realizado.

Havia uma angústia:

O tempo que lhe roubava tempo.

Havia uma morte:

A sua própria morte, que o tempo cedo ou tarde lhe traria. E de novo o medo do cemitério, do jazigo, do nada.

Mas como não sofrer, se o sonho era impossível?

Havia uma saudade:

Da infância, em que o sonho era somente sonho e não se misturava a pesadelos. Em que Deus era um retrato na parede de um menino nos braços da mãe. Em que o abismo simplesmente não existia. Nem o medo. Nem a angústia. Nem o tempo. Nem a saudade.

Então, corria mundo afora, atrás do sonho. O sonho era puro e vivia iluminado pelo sol. Brincava de sonhar e sonhava com o brinquedo. A morte não havia. E Deus era de plástico, sobre a cômoda.

Havia uma esperança:

Pudesse continuar sonhando após o pó que ficaria no jazigo branco.

Ah, mas queria tantas respostas a tantas perguntas que só o infinito tempo lhe podia dar.

Havia uma porta:

Fechada! Fechada? Entreaberta...

Havia um pavor:

Ser condenado ao abismo da ignorância. Jamais obter as respostas com que sonhava tanto.

Seria que não tinha direito a conhecer o desconhecido, a sondar o insondável?

E isto seria pior que o nada além da sepultura.

Melhor que nem jamais houvesse existido, nem sonhado.

Era aí que o sonho ameaçava transmudar-se em pesadelo puro e eterno.

Havia um vento:

O vento que lhe banhava a fronte pensativa não trazia consigo nenhuma resposta a seus questionamentos tão profundos. Mas era uma brisa tão suave que bastava bebê-la, com a ânsia dos desesperados, para sentir-se quase feliz, quase imortal.

E diante daquele vento tão suave, não havia nada.

Um dia houve um sonho. Sempre haverá.

Mark Scoat
Enviado por Mark Scoat em 24/06/2011
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