ARIMATÉIA
“Tempos críticos, difíceis de manejar”. O velho Arimatéia sentou-se. Lembrou já ter ouvido essa sentença em algum lugar. Eram exatamente esses tempos que ele estava vivendo agora. Difíceis de manejar. Estava cansado, exausto, perplexo. Já completara 75 anos, mas não se sentia tão velho assim. Era forte e saudável, apesar da idade. Afinal, quando criança, fora bem alimentado com o leite e o queijo de coalho da fazenda, batata-doce, coalhada, rapadura, carne de criação. Teve como poucos, uma infância feliz e com fartura. O pai, que de profissão era abatedor em matadouro, criava suínos e, um dia, querendo iniciá-lo na arte do açougueiro, o incentivou a abater um leitão. Foi horrível. A cada machadada, o porco soltava os mais terríveis e angustiantes gemidos que alguém já ouvira. Dizem que se um animal estiver sendo abatido e houver uma pessoa chorando por ele, ele demora mais a morrer. E foi o que aconteceu, mas, enfim, o pobre animal caiu por terra, ensangüentado, e Arimatéia, sentiu a vida do bicho esvaindo-se pela lâmina do cutelo. Seu corpo todo se estremeceu e ele percebeu um vulto, uma mulher, passar ao seu lado, com um vestido negro, como se fosse feito do pano preto de um guarda-chuva. Depois do abate, Arimatéia ficou toda a tarde ardendo em febre e jurou nunca mais repetir tal façanha, porém, o vulto nunca mais sairia de sua memória. Nunca mais.
“Tempos críticos, difíceis de manejar”. A sentença repetiu-se e tirou-lhe de suas lembranças. “Acho que li em algum lugar... talvez nos Evangelhos” - pensou. Olhou para um exemplar da Bíblia, que estava em cima da mesinha de canto. Quis pegá-lo, desistindo logo em seguida, pois sabia que a Bíblia não se abriria mais para ele. Tomou um café e voltou, pela enésima vez a limpar a arma. Estava sozinho em casa e apurou a audição em busca de algum barulho da vizinhança. Silêncio. Já passara do meio-dia. A tarde estava em completo silêncio, apenas entrecortada, de vez em quando, pelo som de um carro passando distante e breve. Apesar do momento de paz, a pobre alma de Arimatéia estava inquieta e angustiada e não se cabia mais em si mesma. O velho não sabia o que fazer. Era preciso tomar uma decisão logo, mas aquela situação era crítica e muito difícil de manejar. Afinal, nesses 75 anos de vida, ele nunca havia experimentado angústia de tal porte, a não ser, no dia em que matara o porco e a sensação parecia ser a mesma. Foi até a janela que dava para um muro, onde havia um jardinzinho improvisado. Ficou parado um instante e voltou-se bruscamente. Percebeu um vulto, uma mulher, passar ao seu lado, com um vestido negro, como se fosse feito do pano preto de um guarda-chuva.
— Não é possível! – teve medo. Sentiu os pêlos se arrepiando por todo o corpo. Outra vez, o vulto pareceu passar ao lado. Esgueirou-se até a cadeira e sentou-se apreensivo. Pegou a arma e pôs-se novamente a limpá-la freneticamente. Sabia que aquela situação iria levá-lo à loucura e talvez fosse melhor mesmo que o levasse. O que ele tinha feito não tinha perdão, mas o fez por achar certo fazê-lo. Guardou a arma entre os livros que estavam sobre a mesinha. Ele olhou para a Bíblia e a Bíblia olhou para ele. Mas já era tarde demais para apegar-se às coisas espirituais.
— Vou sair. Andar um pouco, sei lá! – falou consigo mesmo. Em passos lentos saiu de casa e o sol inclemente o esbofeteou na face. O calor era terrível e por um breve instante quis voltar para o aconchego da casa, mas a casa não lhe queria mais. A rua em que ele morava era estreita e lhe pareceu ainda mais estreita, como se estivesse se fechando em torno dele. Ele atribuiu essa sensação a um mal-estar repentino, uma vertigem. Continuou assim mesmo, cambaleante. Estava péssimo! Olhou para trás e viu a casa ao longe, bem longe. Tinha andado tanto assim? Estava tonto e procurou alguém que lhe pudesse ajudar a voltar para casa. Não havia ninguém. A rua estava vazia e era silêncio profundo. Não havia pássaros, nem pessoas, nem carros, nem nada. Só a rua estreita a alongar-se mais ainda. Havia um longo muro que ladeava toda a rua, mas não projetava sombra nenhuma. O sol estava a pino sobre a cabeça de Arimatéia.
— Na esquina da Padre Mororó tem um barzinho. Bebo alguma coisa lá. Uma coca-cola geladinha cai bem – pensou. Com dificuldade, cansaço e indisposição, alcançou o final da rua. Olhou para cima e viu a placa azul, envelhecida pelo tempo e pela maresia: Rua Tijubana. Era a rua que ele morava, com certeza. Sempre quis saber o significado daquele nome de rua. Seria tupi-guarani? Continuou a árdua caminhada e enfim, chegou à esquina. A Rua Padre Mororó, sempre cheia de carros, ônibus e pessoas estava vazia. Procurou o barzinho para beber a bendita coca-cola e nada viu senão portas fechadas, calçadas vazias. Até o posto de gasolina do outro lado parecia abandonado pelo tempo.
— Deus do Céu, onde estará todo mundo? – A pronúncia da palavra Deus causou-lhe um amargor na boca e cuspiu, fedorento, uma gosma catarrenta. A sede castigou-lhe mais ainda e lembrou-se da coca-cola geladinha. Lembrou que tinha um restaurante na esquina da Rua Castro e Silva, em frente ao Cemitério São João Batista. É certo que ele tinha receios de comer alguma coisa naquele antro, mas não havia outra saída. De onde ele estava, dava pra ver que tinha alguém lá, finalmente. Achou longe, mas com dificuldade, iniciou a empreitada. As pernas doíam, não sentia os dedos dos pés e percebeu que estava todo mijado. — Que porra é essa? – Aquela situação nunca antes vivida estava lhe deixando completamente desorientado. Um vento forte soprou levantando um redemoinho de poeira. Apoiado no muro do cemitério, Arimatéia sentiu náuseas e medo e dor. Percebeu um vulto, uma mulher, passar ao seu lado, com um vestido negro, como se fosse feito do pano preto de um guarda-chuva. — Que porra é essa? Será que eu bebi? – Completamente desorientado, aos tropeços, o velho Arimatéia chegou ao restaurante e sentou-se no batente, na sombra. Sentiu alívio e sorriu. Respirou com dificuldade, e extenuado, pediu uma coca-cola geladíssima, ao homem que, debruçado no balcão velho e sujo, proseava com outro homem que parecia ignorar o velho arquejante, sentado no batente. — Seu Raimundo, me traz uma coca... – pediu, alterando a voz, mas o homem no balcão não lhe prestou atenção alguma. — Ô seu Raimundo!... – Arimatéia tentou levantar, mas sua atenção se voltou para a rua. Uma multidão de pessoas corria de um lado para o outro, numa balbúrdia generalizada. Havia carros e motos de polícia pra todos os lados. Ele não conseguia ouvir direito o que as pessoas falavam, tão grande era a confusão de pessoas, carros, ônibus e buzinas. O barulho era intenso, mas o desgraçado Arimatéia, estupefato, sentado no batente do restaurante, arquejante como um cão danado, observou alguém perguntar para o seu Raimundo do restaurante, o motivo daquela algazarra toda. E o homem, debruçado no balcão velho e sujo, falou algo que fez a pobre alma do velho Arimatéia, fender horrivelmente, num misto de agonia, medo e dor.
— Aquele velho, que mora ali na Tijubana, se matou hoje de manhã. Parece que ele era açougueiro. Tá lá, a casa escancarada... Horrível. Deus se apiede de sua alma!