Seco e Tinto...
– Um vinho, por favor...
– Seco ou tinto?
– Seco e meio amargo...
Amargo... como a vida é as vezes, amarga.
Foi a um tempo perdido que os relógios jamais o trarão de volta nas voltas que o ponteiro dá. Era quando existia eternidade e eu podia correr atrás de Alice no seu país fantasioso... eu corria na minha infância... corria os campos pra bem longe de todos... corria livremente com o vento no rosto como um pássaro... eu corria livremente...
– Por favor, você poderia pedir ao pianista que me tocasse a Opus 37 de Chopin. É um pedido de aniversário.
– Claro. Tenha as nossas congratulações, senhor...
Alice... por trás de toda a vida há uma grande paixão. É imprescindível viver a experiência de uma grande paixão e incomensurável a sua importância em nossa vida. Mesmo quão grande seja a infindável frustração de nossas vontades...
– O vinho está ótimo e Chopin, como sempre, inenarrável.
Quando nasci, eu deveria ter sido lançado do monte Taigeto como os filhos impróprios de Esparta. – Sorte! Meus pais tiveram compaixão de minha aparência um tanto diferente. A fissura labial é um problema congênito e provoca uma fisionomia fora dos padrões estéticos de beleza. É um toque divino que põe alguns indivíduos no seu lugar um pouco atrás das possibilidades romanescas e um pouco à frente na lista dos mais perturbados com os mais horrendos opróbrios escolares. Aliás, a minha vida toda foi uma grande chacota, divina. É a permissividade dos céus na construção de conflitos espetaculosos para a grande tragédia da vida. O prazer às vezes consiste em assistir a dor dos outros. – Sorte! Meu pai era arquiteto e minha mãe, médica. Financiaram uma cirurgia planejada para quando os meus lábios estivessem mais desenvolvidos, para camuflar a falha genética, amenizando meu problema com as mulheres quando completei dezoito anos. Mas nada superou meus traumas psicológicos...
– Grande Chopin... consegue traduzir as paixões e aflições de um ser como eu em um belo piano. Adoro a música... sinto a alma... sinto a vida sendo consumada poeticamente... sinto... é bom sentir, sobretudo a vida.
– Por favor, traga-me outra taça de vinho, o mais amargo que tiver!
Eu tinha dezoito anos quando conheci Alice... foi perto do farol, do mar... a praia era das gaivotas e eu as fotografava. Uma moça voava os cabelos no vento do mar... lindos aqueles cachos negros e o vestido branco... era quase uma noiva... não pude deixar de fotografá-la... “Oi, posso lhe entregar uma coisa?”; “Oi... que coisa?”; “Isto...”; “Ah, que lindo, uma foto minha...”; “O enquadramento era mais bonito que o das gaivotas.”; “Obrigada, o meu nome é Alice...” Alice... tornamo-nos amigos e posteriormente namorados... Foi a minha eternidade aquele amor, foi a minha vida... era bom viver... antes eu era um fracassado, vivia me escondendo das pessoas com medo de mais opróbrios, com medo de que me olhassem com aquele horror. Depois da cirurgia fiquei bem melhor. Pude viver de verdade e na agradável companhia de Alice. Nadávamos juntos no mar, subíamos a colina, corríamos os campos... posso dizer que nos amávamos. E como amei aquela mulher... a vida, é talvez essa troca energética entre corpos que depois se dissipa...
– Por favor, mais um pedido de aniversariante: Você poderia tocar a Nocturne in F sharp minor. Opus 48. No. 2? Chopin é o meu predileto.
– Claro senhor!
Eu estava de regresso com Alice de um restaurante como este. Comemorávamos o primeiro calendário do nosso romance. Na esquina da rua esperávamos o sinal dos pedestres... um carro em alta velocidade se precipitou no asfalto molhado... os veículos são meios facilitadores de locomoção. O problema está na velocidade que é um grande perigo para os automóveis e principalmente para os inocentes. Pior que isso não tem nada a ver com deus. Os ponteiros moveram-se cinco graus de segundo e foi o suficiente para arruinar o sonho de minha vida. Pobre Alice... o chão tinto de sangue... foi a queda do alto do Taigeto... tudo tão rápido que deu pra perceber a ternura dos pingos da chuva cruzar o céu lentamente... o beijo do destino no asfalto molhado... tornei-me um homem seco...
– Chopin e vinho...
A paralisia é insuportável! Eu não me suporto e ninguém suporta um paralítico pessimista, cético e ateísta como eu! A questão é que a vida torna-se às vezes um grande malfado e é compreensível o suicídio. Mas tornei-me forte depois de ter nascido frágil, para superar a morte. Ou talvez seja o covarde medo da morte. Pior que isso, é perceber aos poucos que o amor é apenas uma convenção de trocas. Trocas subordinadas, mútuas... e proporcionalmente Alice vinha me tratando diferente por todas as minhas diferenças... talvez porque ela percebeu que não éramos mais compatíveis... não haveria condições de sustentar, na titânica juventude, a invalidez alheia... tudo por uma questão de proporções... é o destino trágico que está presente em alguns seres vivos: como os sapos que não tornaram-se príncipes e foram engolidos pelas cobras; e as cobras que foram devoradas pelos abutres; as girafas que foram ingeridas pelos leões; e os seres humanos que não escaparam da terrível cadeia alimentar. Os fracos são facilmente substituídos e consumidos pelos fortes. E tudo isso é mais uma genial ideia divina...
– Por quê? Por que deus faz isso com a gente? Talvez ele não exista para ouvir tudo isto. Ou talvez eu seja insignificante porque nunca ouvir a voz dele... Ahahaha... esqueci que as vezes falta sorte...
– Disse alguma coisa senhor?
– Sim! Traga-me outra dose de vinho, mas desta vez, tinto e doce...
– Sim senhor!
– Bravo Chopin! Bravo... Aplausos... Bravo...
Os artistas nascem da escuridão, como as estrelas!...
– Aqui está o seu vinho senhor...
– Está ótimo! Posso fazer o último pedido de aniversário?
– Claro senhor, se estiver sob o meu alcance...
– Você tem sorte, tenho um presentinho pra você também hoje... mas diga ao pianista que eu gostaria de tocar a próxima música. Nocturne in F minor, Opus 55. Afinal não é todo dia que completamos 23 anos de vida!
Washington Machado.
26 de maio de 2011.