O voo nupcial das aleluias

Foram as flores que levaram Ana a travar relacionamento com Emílio e Roxane. Certo dia, por volta das seis da manhã, estava regando o jardim quando viu que um sujeito enorme, mulato, rondava o gradil cercando a casa. Como estava encoberta pela luminosa ramagem florida de uma buganvília, percebeu que o rapaz ainda não dera por sua presença. Mais curiosa que possuída por alguma espécie de medo, resolveu observá-lo. Ele ia de um lado para o outro, assobiando uma musiquinha descompassada, as mãos enfiadas nos bolsos do uniforme de marinheiro. Súbito, meteu a mãozarra entre as grades e colheu uma imensa rosa vermelha, cintilante de orvalho.
Mas que vergonha! admoestou Ana, deixando o arbusto.
O rapaz olhou-a, assustado. Tanto não contava com aquela aparição que sequer notou o tom divertido das palavras.
Me desculpe. Era um presente..., titubeou, não sabendo em que lugar esconder a rosa, para alguém.
Estou brincando, disse Ana. Em seguida pegou a tesoura e cortou mais algumas flores, entregando-as para ele, através do gradil. O rapaz gaguejou um agradecimento e se foi.
Voltou a vê-lo uma semana mais tarde, no mesmo horário. Dessa vez pediu as rosas, ao invés de furtá-las. A sabedoria conquistada ao longo dos 80 anos dizia-lhe que um homem que furta uma flor é incapaz de grandes maldades, assim convidou-o para entrar e tomar consigo uma xícara de chá. O rapaz hesitou, ponderando a ideia por alguns instantes. Por fim perguntou se não poderia trazer a namorada um dia qualquer.
Ela se chama Roxane, disse, abriu um largo sorriso de dentes brancos e estendeu a mão através das grades: Eu sou o Emílio.
Ana pegou a mão, uma mão imensa, coberta de calos.
Traga a garota quando quiser, Emílio.
Domingo?
Domingo está bem. Às cinco da tarde?
Para nós não é problema.
Às quatro da tarde de domingo começou a cair uma chuvinha gelada, intermitente e irritadiça. Eles não virão, disse Ana a si mesma, sentindo um quê de amargura, uma tristeza fina e cortante como a sensação da perda irreparável de um belo sonho. Por volta das cinco a tarde cobriu-se de aleluias, voando para o acasalamento. E foi entre vôos de aleluias que viu, através da vidraça, um táxi parar em frente ao portão – do veículo desceu o mulato forte em roupa domingueira. Deu a volta por detrás do carro e abriu a porta para Roxane. Um ser de rosto muito branco emergiu para a rua. Estava com um gorro de pele na cabeça e enfiado num casaco cinza. Aparentava uma fragilidade assustadora. E no entanto era uma figura alta, visto que ao abraçar-se ao ruivo, as duas cabeças se nivelaram.
Podem entrar, o portão está aberto, disse Ana ao interfone e voltou à janela para observá-los. Roxane caminhava com dificuldade, como se os nervos das pernas estivessem muito enfraquecidos. Na metade do caminho pararam, indo sentar-se no banco de pedra junto ao tronco do castanheiro. Ana deixou a janela e foi abrir a porta para recebê-los.
Essa é a Roxane, disse Emílio, procurando apreensivamente em Ana algum sinal de surpresa, descontentamento ou cinismo. Os lábios macios e naturalmente vermelhos de Roxane sorriam. Nenhum nervo nas faces de Ana revelou-lhes a genuína surpresa. Estendeu a mão e apertou a de Roxane.
A senhora é tão linda, disse Roxane e suspirou saudosamente. Me lembra muito a minha vovó Ema. Ana gostou daquelas palavras e sentimentos maternais há muito enterrados no peito vieram à tona de supetão.
Por que você não me chama de vovó Ema? disse, embalada pela meiguice daquela voz. Entraram na casa. Roxane disse um Oh!, expressando todo o deslumbramento, as duas mãos espalmadas nas faces, a boca aberta como se desejasse que o encantamento que lhe ia ao peito se materializasse sobre os objetos de arte que Ana colecionara ao longo da vida – e dispostos em todos os cantos da residência.
Vida. Foi isso que Ana viu brotando nos olhos febris de Roxane. Assim, num estalar de dedos, seu rosto lívido rosou-se, parecia uma pétala de flor em pleno desabrochar. Foi tomada por um frêmito de entusiasmo, acariciou as pequenas estatuetas de marfim, as porcelanas chinesas, as máscaras africanas. Ficou inebriada com o piano branco e martelou algumas notas.
Está afinado! exclamou com alegria pueril. Emílio, ainda parado junto à porta, observava a cena com resignação.


A mesa já estava posta. Sentaram-se, Ana e Roxane. Emílio permaneceu de pé, entre as duas, justificando:
Sou muito grande e pesado. Essas cadeirinhas de brinquedo não me iriam aguentar...
Quer que eu sirva você, querido? indagou Roxane, enquanto erguia com graça a chávena de porcelana. Emílio balançou negativamente a cabeça, sufocado pelo desespero.
Vamos, experimente! incentivou Ana.
Me perdoe, madame, mas sou um marinheiro. Um homem bruto, acostumado a brigas, bebedeiras... não levo jeito pra essas coisas não. Parou de falar, sorriu, desanimado. Desculpe, senhora. Meu Deus, estou sendo grosseiro...
Vovó Ema entendeu tudo, não é, vovó?, disse Roxane e Ana foi presenteada com um sorriso muito feminino de cumplicidade.
Mas é claro, respondeu, vendo Roxane mastigar gulosamente um biscoitinho inglês.
Esse biscoito... é bom? indagou Emílio.
Uma delícia! Coma um.
Emílio trincou nos dentes poderosos o biscoitinho de polvilho.
Onde vocês moram? perguntou Ana.
Roxane tem um apartamento... adiantou-se Emílio, ela tá com trinta anos e ainda recebe mesada dos pais, mesmo sendo arquiteta, arrematou, algo cínico.
Recebo mesada da mamãe, querido. Meu pai não quer me ver nem morta. Tocou no braço de Ana e confidenciou: Quando soube da operação tornando-me transexual, teve um ataque cardíaco. Voltou-se para Emílio: Experimente o chá, querido. Não vê que está fazendo pouco caso da vovó?
Gostaria de beber outra coisa.
Se quiser, disse Ana, vá lá à cozinha e peça ao pessoal uma bebida.
Tem?
É claro, meu rapaz. Aproveite e peça que lhe façam um belo sanduíche, você parece faminto.
Estou mesmo, concordou ele. Ana disse-lhe como chegar à cozinha. Logo que Emílio sumiu, embarafustando-se pelos corredores, Roxane comentou:
É um bom companheiro, mas vai me deixar...
Ora, mas por quê?
Ele é marinheiro de cabotagem, mas vive sonhando em navegar por mares desconhecidos. Como já não temos mais relações sexuais... estou muito doente, sabe... Ora, ele é bem jovem, acreditaria se eu dissesse que ainda não completou vinte e dois anos?, bom, ele é jovem, tem uma saúde de ferro, energia, toda uma vida pela frente... Acha que vai ficar servindo-me de enfermeiro? Eu, na verdade, desejo imensamente que ele me deixe... em sã consciência, não posso e nem quero sacrificar sua juventude, seus sonhos, sua vida, entende? Sorriu, desalentadamente e mudou repentinamente de assunto: Quer que eu toque um pouco de piano para a senhora?
Mas é claro!
Roxane levantou-se e tirou o grosso casaco, jogando-o sobre uma poltrona. Estava vestindo um conjunto branco, algo semelhante a um terninho. Dirigiram-se à sala. Roxane sentou-se na banqueta do piano.
Vou tocar Harmonious Blaksmith, de Handel.
No meio da interpretação apareceu Emílio. Bêbado. Pelo visto devia ter entornado toda a garrafa de bebida num só trago. Acusou a companheira de promíscua, vomitou um monte de palavrões e saiu, batendo a porta. O caudal de lágrimas de Roxane, seu soluçar entrecortado, o desamparo que apresentava o corpo doentio, todas essas coisas abalaram Ana profundamente. Naquele momento o que mais desejava era acalentar aquele ser consumindo-se em desespero. Foi o que fez.
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Roxane ficou para o jantar. Depois, Ana resolveu que ela deveria passar a noite na residência. Poderia mandar o motorista levá-la, mas, curiosamente, convenceu-se de que um encontro de Roxane e Emílio – àquelas horas talvez muito mais bêbado – poderia ser-lhe fatal. Uma tolice, advertia-lhe o bom-senso. Como viviam juntos, aquela não seria em absoluto a primeira vez que brigavam. Irritada consigo própria, mandou às favas o bom-senso. Roxane ficaria e pronto. Que mal haveria em hospedá-la por uma noite? Decisão tomada – e aceita pela visita – ficaram bebericando xerez e conversando como velhas amigas até as duas da manhã. Depois, já recolhida ao leito, Ana ficou pensando: vivia esvoaçando em torno de si naquela casa uma multidão de pessoas – havia Mirthes, a governanta, solteirona de 51 anos, discretíssima; Afonso, o motorista, velhote a seu serviço há mais de 20 anos e dono de uma rabugice risível; Marta, a cozinheira, uma matrona de gargalhada estrondosa; Maria das Graças, copeira, 30 anos e mãe de Lígia, menininha bastarda, fruto de tempestuosa relação com um pedreiro que havia trabalhado na construção de prédio residencial vizinho a casa; Glória, da faxina, mulher gigante que Ana livrara da enxada e da monotonia em uma de suas fazendas – embebedava-se todos os sábados, berrava ao mundo inteiro que o negócio dela era mulher, retirava vales vultosos e saía madrugada afora em caçadas sexuais. No fim do mês já estava sem um centavo do salário. Este, o mundo de Ana. Claro, havia os filhos, netos, bisnetos – todos espalhados por aí, pelo Brasil e mundo e que raramente apareciam, achando que o telefone substituía o calor humano de uma presença física; as amigas do bridge das quintas-feiras e que, de resto, prestavam-se apenas para fofocar sobre a vida alheia. Toda essa fauna não conseguia aplacar-lhe a terrível solidão. Na verdade, parecia-lhe que Roxane preenchia uma vasta zona de seu ser com as mais elementares necessidades: era bela, conhecia as artes, tinha bem-posto apurado. Naquela noite nem viram a madrugada chegar, discutindo com paixão música, pintura, literatura e, mesmo, balé. Ana sempre amara essas coisas e encontrara um pólo receptivo para suas divagações, análises críticas, ternuras e entusiasmos. Já meio adormecida, passou-lhe pela cabeça vários planos para convencer Roxane a morar consigo.
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Acordou tarde. O luminoso do rádio-relógio marcava dez e meia da manhã. Sentia-se rejuvenescida, de bom humor, plena de saúde e, sobretudo, feliz. Não conseguiria dissecar em palavras essa felicidade – mas sabia de sua força motriz: Roxane.
E Roxane, como se estivessem ligadas telepaticamente, naquele momento invadiu o quarto como uma lufada de brisa primaveril, nas mãos a bandeja do desjejum.
Deixaram que eu trouxesse o seu café da manhã, vovó. Roxane estava sem o gorro de pele e só então Ana pode ver que tinha os cabelos louros e encaracolados, lamentavelmente começando a rarear – A senhora está maravilhosa, querida. Quer saber? Não vou mais chamá-la de vovó. É ofensivo ao seu espírito juvenil. E muito menos de Ana; é um nome bonito, mas não combina com sua personalidade.
E como é que você irá me chamar, indagou Ana, um tanto brincalhona.
Ah, ainda não pensei no assunto. Mas prometo que será um nome bem gracioso.
Roxane ajeitou a bandeja no regaço de Ana, sentou-se aos pés da cama, cruzando as pernas longas, completou: E nem vou tratá-la por senhora. Ora, como podemos ser íntimas com essa palavra tão formal entre nós? É realmente uma coisa tonta. Ah, sim. Cuidei de suas flores. Riu, marota. Não irão ficar magoadas com você. Viu? Eu disse você! Não é tão mais simpático?
Assim que terminou de comer, Roxane colocou a bandeja sobre o criado-mudo.
Quer que eu vá preparar o seu banho? Ou será que tem vergonha de que eu a banhe?
Ser banhada por Roxane? Não, não, não. A ideia sequer lhe passava pela cabeça. Morreria de vergonha.
Pode me preparar o banho, mas vou tomá-lo sozinha.
Claro, você manda!
Descobriu, então, que não mandava em nada. Roxane esfregou-lhe suavemente o corpo todo, ali, dentro da banheira. A calidez das mãos em suas carnes era uma experiência inaudita, fabulosa, algo que dava um prazer tão pleno que se sentiu constrangida. Roxane enxugou-a com a mais felpuda das toalhas, ajudou-lhe a vestir as peças íntimas. Opinou sobre o vestido que deveria usar naquela manhã – escolheram um azul-turquesa já que, segundo Roxane, era uma cor compatível com o sol lá fora se fazendo esplendoroso. Estavam no toucador, Roxane penteando-lhe os cabelos, quando Lígia, a filhinha da copeira, entrou. Vestia um pijama com estampas dos personagens Mônica e Magali: numa das mãos trazia um pedaço de bolo e na outra segurava por uma das pernas uma bruxinha de pano feita artesanalmente.
Bisa, ela é alguma anja? perguntou, encarando as duas através do espelho, cheia de admiração.
Roxane riu, deliciada. Abaixou-se e beijou a guria nas faces.
Foi o maior elogio que já recebi em toda a minha vida. É sua bisneta?
É da casa, respondeu Ana. Na verdade, acho que ela é a dona da casa e patroa de todo mundo.
Roxane deu um longo abraço na menininha, sujando-se de bolo, e depois voltou-se para Ana:
Querida, preciso ir ao meu apartamento pegar algumas roupas. Você pode me acompanhar?
Então foi assim. Ana sentiu-se grata por Roxane captar a essência dos seus pensamentos e desejos.
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Do apartamento trouxeram apenas um bilhete de Emílio dizendo que embarcara num navio de bandeira grega. O bilhete esta pregado com tachinha atrás da porta de entrada – o apartamento tão limpo quanto um ovo. Emílio vendera todos os pertences de Roxane: roupas, calçados, jóias e bijuterias – as lâmpadas, os móveis, o chuveiro. Roxane ficou arrasada. Sentou-se no chão e chorou destemperadamente. Ana também estava decepcionada. Fora-se a ilusão de que um homem que furta uma flor é incapaz de grandes maldades.
De volta a casa, passaram em várias butiques e, com o cartão de crédito de Ana, Roxane refez como quis o guarda-roupa. À noite já recuperara seu humor harmonioso, seu humor benfazejo.
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Roxane começou a chamar Ana de Lazulita e deu uma longa explicação esotérica para justificar o nome. As amigas do bridge das quintas-feiras adoraram-na. A maioria constituía de viúvas ou divorciadas com muito dinheiro e que sustentava rapagões vadios, bancava faculdade de um ou de outro, exibia os mais bem dotados como se fossem objetos de luxo ou meros troféus de caça – Ana somente estava se integrando de forma cabal ao círculo das veleidades proporcionadas pela riqueza – apenas se mostrava um tanto mais excêntrica na escolha da companhia.
Começou a viver com Roxane um estranho relacionamento. Como enfermeira zelosa, levou-a a eminências da medicina. Como se fossem amantes, gostava que Roxane a banhasse, tinha nessas ocasiões um prazer intenso e misterioso, sem nenhuma conexão com o orgasmo. Um dia, de tanto Roxane insistir, acabou convencida a esfregar-lhe as costas; logo estavam as duas na mesma banheira, compartilhando os sais aromáticos, a esponja, o sabonete.
Certa noite, a madrugada fazendo-se alta, Ana não conseguia conciliar o sono – sentia uma palpitação no peito, uma angústia indefinível invadindo-lhe as entranhas, o corpo todo incomodado: uma dorzinha persistente e desconhecida nos tornozelos, os braços formigando, a mente num desassossego irritante, eivada de maus presságios. Estava procurando uma explicação lógica para tamanho mal-estar, quando ouviu batidas indecisas, tímidas, na porta do quarto.
Entre! quase gritou, exasperada, acendendo a lâmpada do abajur no criado-mudo. Roxane adentrou o recinto, fantasmagórica à claridade mortiça reinante.
Lazulita, me sinto tão doente!
Cambaleou até a cama, sentou-se em sua borda, pegou a mão de Ana.
Vê como estou gelada e tremo?
Ana pediu-lhe que tirasse o penhoar e se deitasse ao seu lado. Cobriu-a com edredões, abraçou-a apertadamente. Brincou:
Já estive assim. São os sintomas da menopausa.
Roxane riu alto, cristalino. Ajeitou melhor seu corpo junto ao de Ana. Aos poucos os calafrios foram se extinguindo. Logo sua temperatura se normalizava.
Deus, como eu te amo, Lazulita... disse, momentos antes de pegar no sono. Ana ficou muito tempo sem pregar os olhos, acariciando o rosto de Roxane, os pensamentos vagando, às vezes penetrando em regiões tenebrosas, tão tenebrosas que lhe era difícil escapar de seus alertas nefastos. Em dado instante, ao acarinhar a loura cabeleira de Roxane, viu, perturbada, que em seus dedos ficaram tufos de aneladas madeixas.
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Veio então a fase de delírios. Roxane cismou que construiria aos fundos da casa o que chamou de Jardim Místico. Primeiro, convocou firma especializada para que se levantasse uma estufa. Não uma estufa qualquer. Ela mesma trabalhou no projeto com afinco, amor e determinação de arquiteta de insuspeitáveis talentos. Com riqueza de detalhes, infernizou os operários para que tudo fosse feito milimetricamente de acordo com sua concepção.
Erigida a estufa, Roxane cuidou de provê-la de flores, sobretudo orquídeas. Saía quase todos os dias com Afonso, o motorista, e passavam, às vezes, mais de oito horas circulando pela cidade à procura de raridades em floriculturas e orquidários. À noite, deitadas na mesma cama, discutiam o assunto apaixonadamente. Ana estava maravilhada com o entusiasmo da garota – Roxane estava mergulhada em estudos sobre o processo de enxertos e sonhava dentro em pouco possuir espécies únicas de orquídeas. Dentro de alguns meses, a estufa transformou-se, de fato, num Jardim Místico.
Em setembro, no início da primavera, Roxane teve a doença profundamente agravada, apesar do tratamento médico sempre e sempre levado muito a sério. Caiu de cama, perdeu as louras madeixas, uma fraqueza indescritível a dominava. Era o fim. Ana avisou Rebeca, a mãe, uma senhora doce e tímida, que ficou à beira do leito até o desenlace. Últimas palavras de Roxane:
Não vou deixar meu Jardim Místico, Lazulita. Ah, isso não, querida.
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O mundo tornou-se melancólico, mesmo estando o Jardim Místico cada vez mais exuberante. O sorriso de Ana perdeu-se nos labirintos das recordações dos tempos felizes ao lado de Roxane. Ficava na cama até as duas, três da tarde, não se alimentava direito e os negócios pouco interessavam, para o desespero do pessoal do escritório. Numa tarde fria e chuvosa Lígia entrou no quarto com um imenso saco de pipocas nas mãos, os dentinhos mastigando ritmicamente como gracioso coelhinho.
Bisa, disse, a estufa tá cheia de bichinhos.
Bichinhos? Ana levantou-se apressadamente. Como pudera descuidar-se do Jardim Místico? Deixou Lígia no quarto brincando com o porta-jóias musical e foi à estufa. O recinto estava fervilhando de esvoaçantes aleluias e, pousada junto à corola de uma orquídea branca, havia uma estranha forma de cor leitosa, de uma polegada de comprimento, acenando com o que lhe pareceu patinhas. Curiosa, foi buscar a lupa que usava para apreciar a coleção de selos raros – desde então Ana tem se desfrutado da companhia de uma Roxane, ali, na estufa, sempre trajando o terninho branco e menor que a unha de um dedo mindinho.