A LOURA DO ASFALTO

          O automóvel era novinho em folha e era a primeira vez que o rapaz, seu orgulhoso dono, dirigia-o por aquela estrada, ladeada de sítios de café vindo de Dracena. Sentia o prazer de pressionar o acelerador do fusca e ouvir o ronco suave do motor ainda amaciando. O sol vermelho já tocava o horizonte e o rapaz apressava-se, pois não gostava de dirigir à noite em virtude de sua miopia acentuada. Pensava: “Agora vai ser muito mais fácil sair com as garotas depois dos bailes no clube, levá-las pra casa, beijá-las dentro do carro, como nos filmes americanos”. Não tinha sido fácil adquiri-lo. Na pressa de ter logo um carro, já no primeiro salário mensal, aplicou parte do dinheiro na adesão a um consórcio de veículos. Nos meses subsequentes, quase morria de ansiedade na expectativa do sorteio, e de decepção, ao saber que não fora contemplado. Um ano depois percebeu que era azarado demais para confiar na sorte e então começou a economizar para dar um lance significativo. Em seis meses conseguiu a quarta parte do preço do automóvel, afora as prestações já pagas. Foi a São Paulo especialmente para dar o lance em envelope fechado na assembleia num dos andares do majestoso edifício Itália. O lance não podia ser feito em dinheiro, mas através de um formulário onde o interessado prometia pagar em setenta e duas horas o lance estipulado. Quando os envelopes começaram a ser abertos e revelados, o rapaz percebeu que sua oferta era muito boa. Provavelmente sairia com o carro. Só faltavam dois envelopes e ele continuava com o maior lance. Já sorria confiante quando o locutor anunciou uma quantia que derrubou seu sonho. Cem cruzeiros a mais. Míseros cem cruzeiros de diferença. Voltou para Adamantina, sua terra, mais desolado que nunca. No entanto, quatro dias depois recebeu um telegrama da administração do consórcio informando que se ele mantivesse o lance, poderia buscar o automóvel, pois o outro concorrente não havia conseguido o dinheiro dentro do prazo previsto. E assim, feliz da vida, voltou a São Paulo para ultimar a papelada e pegar o carro zerinho na agência. A primeira visão que teve do carro foi inesquecível: um automóvel Volkswagen sedan vermelho-grená, reluzente, à mostra entre correntes niqueladas suspensas por suportes tubulares dourados. Um temor invadiu-lhe o corpo quando pensou em retirá-lo dali e lançá-lo na turbulenta corrente de tráfego da Avenida Duque de Caxias. Mas armou-se de coragem e, na verdade, fez sua primeira viagem de seiscentos e poucos quilômetros sem nenhum percalço. Tudo isso pensava enquanto o carrinho rodava macio, agora acostumado em suas mãos cuidadosas, naquele fim de tarde. Em casa, após lavá-lo e lustrá-lo, estacionava-o, às vezes, numa pose meio lateral, as rodas viradas para um lado, e sentava-se de frente, apenas para admirá-lo enquanto sorvia uma cerveja no calor do sábado.

          Seus pensamentos foram interrompidos por uma visão inesperada: uma mulher de vestido vermelho e de longos cabelos louros acenava pedindo carona à beira da estrada. Seu coração disparou. Seria a primeira garota a entrar em seu carro. É claro que ele ia dar carona. Diminuiu a marcha para ter tempo de observá-la melhor e o rapaz percebeu que era muito bela e que apoiava o pé calçado de sapato de salto alto num toco a guisa de banco na saída de um carreador. Provavelmente não era da região. Por ali não havia aquele tipo de beldade. O vestido era decotado e podia se vislumbrar um colo generoso e cheio de sardas. A bainha do vestido também estava acima do joelho na perna apoiada. O automóvel acabou passando por ela, tão absorto estava na contemplação. Ela sorriu sedutoramente quando ele passou. Ele freou o carro, deu ré e parou ao lado da loura.

          — Me dá uma carona? — pediu, sem desfazer a pose — eu preciso que alguém me ajude a sair daqui, sabe? — acrescentou, aproximando-se.
          — Tá indo pra onde? — perguntou o rapaz em resposta.
          — Para frente, para qualquer lugar — respondeu ela de modo evasivo, e tornou a dizer: — Preciso sair daqui...
          — Bom. Vou entrar em Adamantina. Está bem pra você?
          — Claro! Eu desço no posto de gasolina, próximo à via de acesso à cidade.
          — Ah. Sei. Entra, então.

          O rapaz destravou a porta pelo lado de dentro e abriu-a. A moça, sem dizer nada, empurrou o encosto do banco da frente de encontro ao painel e acomodou-se no banco traseiro. Estranhando a atitude da moça, perguntou:

          — Você não quer se sentar aqui na frente, ao lado do motorista?
          — Ah! Me desculpe. Se você não fizer questão eu fico aqui mesmo — disse ela com simpatia. — Não gosto de sentar-me no banco da frente.

          O rapaz nada disse e empurrou o encosto para a posição normal, tornou a travar a porta, reconduziu o veículo para a pista. Após ter engrenado a quarta marcha, perguntou:

          — Fazia muito tempo que você estava esperando passar alguém?
          — Oh, sim. Muito tempo — respondeu a moça. — Muito tempo mesmo.
          — Você tem parentes naquele sítio?
          — Que sítio?
          — Ora, você estava junto à porteira de entrada do Sítio do Mato Grande...
          — Nem tinha notado... Mas, de qualquer forma, não conheço ninguém por aqui — disse ela com ar triste.
          — Você viaja só de carona?
          — Na verdade, estava fazendo minha primeira viagem pegando carona, mas um caminhoneiro malvado me deixou por aqui...
          — Você está indo para onde? — questionou novamente o rapaz, estranhando o jeito da moça se expressar.
          — Estava indo para São Paulo.
          — Como, estava indo? Você mudou de ideia?
          — Pode-se dizer que sim.
          — É, mas estamos indo em direção a São Paulo.
          — São Paulo está muito longe... A direção não importa mais. O que eu quero é sair daqui.

          O rapaz ajustou o retrovisor interno para enquadrar o rosto da moça no banco de trás, para facilitar o diálogo. Ela percebeu e sorriu discretamente. O rapaz retribuiu o sorriso e disse:

          — Não me leve a mal em dizer isso, mas você é muito bonita... E também muito misteriosa.
          — Misteriosa. Misteriosa por quê?
          — Você não me disse ainda qual é o seu destino...
          — Meu destino... — murmurou ela, e em seguida perguntou, ensimesmada: — Quem é que sabe qual é o destino das pessoas?
          — Não é desse destino que estou falando — esclareceu o rapaz — Se não vai mais a São Paulo, queria saber até onde você que chegar.
          — Ah! — disse ela, fingindo surpresa.
          — E então?
          — E então, o quê?
          — Pra onde você está indo?
          — Eu comecei minha viagem em Campo Grande cerca de um mês atrás...
          — Um mês atrás?!
          — Isso mesmo!
          — Mas Campo Grande não é tão longe assim...
          — É. Sei disso. Minha intenção nem era passar por esta estrada. Pretendia estar em São Paulo no dia seguinte. Sair de Matogrosso pelo Porto Quinze e chegar à capital paulista pela rodovia Castello Branco.
          — Então, o que aconteceu?
          — Já te disse. Um motorista de caminhão me deixou lá na mata onde você me achou.
          — Espera aí. Não te achei. Você estava lá pedindo carona...
          — Está bem. Onde você me pegou — emendou a moça.
          — Mas não estou entendendo, se faz um mês que você deixou Campo Grande, onde você esteve todo esse tempo?
          — Nem eu sei. Estou confusa. Só sei que preciso sair daqui. Acho que meus pais estão me procurando.
          — É. Essa sua história é mesmo muito estranha...
          — Olha, lá está o posto...

          O rapaz ficou indeciso por um instante. Gostaria de ficar mais tempo com ela. Tão linda. Talvez aceitasse ir com ele até o centro da cidade para um lanche, uma bebida. Faria inveja aos amigos ao vê-lo com uma beleza daquelas ao seu lado. Mas teve receio de se meter em encrenca. Sabe-se lá porque ela era tão reticente quanto a falar de si mesma. Era muito reservada, confusa, difícil de conversar e resolveu fazer diferente:

          — Vou fazer o seguinte: vou parar e pôr gasolina, mas vou levá-la até o posto da polícia rodoviária, logo adiante. Já é noite e será mais seguro para você arranjar nova condução por lá. Está bem assim?
          — Eu agradeço. Está bem, sim. Mas você me ajuda a sair daqui? — perguntou, de repente, como se não houvesse entendido a proposta do rapaz.

          Definitivamente essa moça é muito louca, pensou o jovem, não fala coisa com coisa.

          — A propósito, você ainda não me disse seu nome... — lembrou-se de perguntar o rapaz, já no acesso ao posto de serviços.
          — Maria, e o seu?
          — Hélio.

          Hélio estacionou o carro junto à bomba e pediu ao frentista que completasse o tanque. Depois se dirigiu ao bar do posto para comprar água e bolachas. Calculava que Maria pudesse estar com fome e sede. Quando voltou, o frentista já havia abastecido o veículo, verificado o óleo do motor e estava lavando os vidros e faróis manchados de insetos. Dentro do carro não havia ninguém. Perguntou pela moça de vermelho que estava no carro e o funcionário olhou-o de modo esquisito.

          — Por que está me olhando desse jeito, rapaz? Eu disse alguma coisa engraçada?
          — Não, não... — gaguejou o rapazote — é que não sei de que moça o senhor está falando...
          — Aquela loura vistosa, de vestido vermelho que estava comigo no automóvel, ora.
          — Olha, eu não vi loura nenhuma.
          — Ela deve ter saído enquanto você cuidava do carro... Você não a viu sair?
          — Olha, o senhor me desculpe, mas posso jurar que quando o senhor encostou na bomba só tinha o senhor dentro do carro.
          — Ah. Ela estava sentada no banco de trás... Ah, Deixa pra lá. Você deve ser cego para não ter visto um pitéu daqueles.
          — Não vi mesmo. E sabe o que mais? Estou me lembrando. Outro dia aconteceu a mesma coisa.
          — A mesma coisa o quê?
          — Um velho saiu do carro pra comprar cigarro enquanto eu abastecia e quando voltou também perguntou de uma loura bonita de vestido vermelho...
          — Ah! Então você já viu a loura por aqui?
          — Não, não. O velho estava sozinho no carro. Não tinha loura nenhuma com ele. Achei que ele era meio gagá.
          — Ah. Essa história do velho é só coincidência. Ela deve estar por aí. Vai ver saiu para ir ao toalete. Vou dar uma olhada por aí. Prometi deixá-la na guarita da polícia rodoviária.

          O rapaz procurou-a por toda parte, deu a volta no posto, bateu na porta dos banheiros, voltou ao bar onde tinha comprado água e bolachas, perguntou por ela. Ninguém a tinha visto. O rapaz se exasperou:

          — Mas o que... Puta que pariu. Que merda é essa? Como ninguém viu essa mulher se vim conversando com ela desde o sítio da mata?

          Ainda ficou ali por mais algum tempo, tentando compreender aquela situação tão fora do comum. Pensou que talvez ela tivesse saído, andando pela estrada. Se tivesse, não estaria longe e poderia ser vista em qualquer das duas direções. Mas não viu ninguém, nenhuma mulher de vermelho caminhando no asfalto. Talvez tivesse pegado outra carona. Perguntou ao frentista se outro automóvel ou caminhão tinha parado por ali. Não tinha. Então, aborrecido, desistiu de entender e foi para casa com as palavras e a imagem da loura na cabeça.

          Uma semana se passou e a ocorrência daquela tarde não lhe saía do pensamento. O fato sem explicação deixava-o cada vez mais angustiado. Lembrava-se de cada palavra dita pela moça, seu semblante melancólico e sua beleza incomum. “Eu preciso sair daqui. O que eu quero é sair daqui”, a voz dela repetia, sem descanso, em sua mente. A princípio não comentou o caso com ninguém, temendo ser ridicularizado ao revelar história tão sem cabimento. Iriam dizer que estava bêbado ou doido da cabeça. Mas, afinal resolveu se abrir com a mãe. Não negligenciou nenhum detalhe. Sua mãe ouviu-o sem interromper. Enquanto o rapaz ia falando a mãe já arrazoava sobre o acontecido. Quando ele terminou de falar, ela riu e disse:

          — Hélio, meu filho. Acho que essa moça estava fugindo de casa, e você a ajudou sumir. Talvez seja alguém das redondezas ou lá do sítio mesmo.
          — Mas mãe, como ninguém no posto a viu? O frentista disse que eu cheguei sozinho...
          — Filho, não seja bobo. Você disse que ela sentou no banco traseiro. Provavelmente havia alguém esperando por ela ali por perto, fora das vistas. Quando você desceu do carro ela saiu sorrateira pelo lado do motorista e por isso o funcionário não a viu.
          — Mãe, mas e aquela história do velho? O velho caduco...
          — Você já está dizendo. O velho era biruta, ou então o moleque do posto aproveitou a deixa pra te confundir mais ainda.
          — Mãe, a senhora pode estar certa, mas tem outras coisas que me intrigam. Por exemplo, se ela estava fugindo, por que não tinha nenhuma bagagem? Se alguém estava esperando por ela perto do posto por que já não a pegou na porteira do sítio? Por que alguém que estava fugindo iria usar uma roupa tão chamativa? Vestido vermelho, decotado, sapatos dourados, de salto alto. Uma moça de zona rural, vestida daquele jeito? Não, isso não faz sentido. Ela tinha jeito de gente da cidade.
          — Ah. Não sei. Só sei que não é preciso bagagem para se ir embora de um lugar; basta ter dinheiro. A pessoa não a pegou na porteira porque poderia ser vista, e aí alguém poderia descrever o carro, ver a placa, sei lá. Sobre a roupa, talvez estivesse fugindo com um namorado, um amante, um homem enfim, e quis estar bonita para o encontro...
          — É mãe. Acho que a senhora tem uma boa explicação para tudo. Deve ter sido isso mesmo. A conversa estranha dela foi só para me enrolar e não passar informação nenhuma. Aquela história de ter saído de Campo Grande, carona de caminhão, destino, tudo papo furado.

          Aliviado de sua angústia pela serenidade com que a mãe desvendou o aparente mistério sobre a primeira garota a viajar em seu carro novo, o rapaz foi ao encontro dos amigos no bar preferido para algumas horas de jogo e cerveja. Lá pelas dez da noite, um amigo que estava ausente, estaciona o opala, cantando os pneus, de mau jeito, e corre para os colegas, todo esbaforido bar adentro, interrompendo um lance decisivo na mesa de sinuca. Quase sem fôlego, vai dizendo:

          — Gente, vocês não sabem o que acaba de me acontecer... Vocês não vão acreditar... Mas eu posso até jurar...
          — Bom, então diga logo e pare de atazanar nosso jogo — apressou um deles.
          — Se você não contar o que é, como vamos saber se dá pra acreditar ou não — resmungou outro.
          — Já sei. Atropelou uma vaca — brincou Hélio.
          —Gente, dei carona para uma mulher de fazer cair o queixo de tão linda.
          — Tá bom, e daí? Cadê ela? Por que não a trouxe para cá?
          — Ruiva, Loira? Morena? — quis saber um deles, interessado.
          — Loiríssima. Daquelas que têm sardas nos ombros. Precisava ver que seios!
          — E você viu? – duvidou o mais curioso deles.
          — Ela estava usando um vestido com um decote bem generoso; deu pra ver um bom pedaço!
          — Então, hoje é sexta, por que não a convidou para vir aqui?
          — Aí é que está o problema. Convidei. E ela topou. Disse que viria comigo. Estava que não me cabia. Aí o carro morreu. Desci, abri o capô, mexi nos cabos e quando voltei para dar na partida, cadê a loira? Tinha sumido.
          — Sumido? Assim, sem mais nem menos?
          — Pois é. Desapareceu. Procurei, chamei e nada. A moça tinha se evaporado. Me deixou na mão.
          — Ah cara, você está é com lorotas. Nem vem com essa conversa pra cima da gente. Para com isso...

          Hélio calara-se, subitamente alarmado conforme a história do amigo progredia. Seria possível que ele estivesse falando da mesma loura? Dominou o nervosismo e indagou:

          — Onde você a pegou? A loura. Onde ela estava?
          — O quê? Ah. Eu vinha vindo de Pacaembu... Foi ali no Mato Grande. É, foi lá.
          — E usava um vestido vermelho?
          — Isso mesmo. Vermelho. Ué, como você adivinhou? Tá vendo gente? — disse, dirigindo-se aos demais colegas. — Não é mentira minha. Ele a conhece, não conhece, Hélio? — buscou apoio o rapaz do opala.
          — Não. Espera aí. Não conheço não. Foi só um palpite — apressou-se em esclarecer ao amigo.

          Hélio voltou para casa, novamente transtornado com essa história que teimava em vir à tona em sua cabeça. Quem seria essa misteriosa mulher que tinha viajado com o velho, depois com ele e agora com seu amigo, e depois, desaparecido sem deixar vestígios em cada uma das vezes? O fato de ter reaparecido punha por terra a hipótese de sua mãe de que achava que a mulher fosse apenas uma doidivanas que teria fugido com um homem. Precisava fazer alguma coisa para desfazer todas essas dúvidas. Tinha de tomar uma atitude. Afinal, decidiu investigar. Aproveitaria o fim de semana para pôr essa história a limpo. Encheu uma maleta com um saldo de calçados que sua mãe adquiria em Jaú e vendia nos arredores e tocou para o Sítio do Mato Grande, que ficava na divisa dos municípios de Flórida e Pacaembu. Apresentou-se como mascate a um molecão da colônia, esperto e falante, que veio ao seu encontro, e pediu-lhe que o levasse até a sede da propriedade. Foi bem recebido por um casal de meia-idade e, entre um sapato e outro, logo ficou sabendo que viviam sozinhos na casa. Tonho, o moleque da colônia, é quem, às vezes, fazia companhia a eles. Não. Não conheciam ninguém com aquelas características e tinham certeza que nenhum meeiro do sítio tinha filha ou esposa loura e bonita, ou que se vestisse daquele jeito, ou que usasse sapatos de salto alto para andar na terra. Desalentado, agradeceu e já ia adiante, de volta para o carro que tinha deixado na porteira, quando Tonho chamou-o e o alcançou correndo.

          — O que foi rapaz? Esqueci alguma coisa?
          — Não. Não é nada não. É que quando o senhor falou de sapato alto eu me lembrei que um dia desses, quando fui armar uma arapuca no mato, vi um pé de sapato bem assim... do jeito que o senhor falou.
          — Bem. E o que tem isso? — surpreendeu-se o rapaz sem entender a relação de uma coisa com outra.
          — Bom, não sei. Só achei esquisito ver isso no mato. Como disse o patrão, ninguém por aqui usa sapato de salto para andar no barro. Mas, tudo bem, falei por falar. Vou cuidar dos meus porcos.

          Sem dizer mais nada, saíram em direções opostas, Hélio, disposto a averiguar outros sítios; e o moleque carreador abaixo. Chegou à conclusão que não levava jeito para Sherlock Holmes, pois sua busca por informações sobre a loura foi absolutamente infrutífera. Entretanto, no domingo voltou ao sítio para procurar por Tonho. Tinha concatenado as idéias durante a noite e chegado à conclusão que deveria dar uma olhada no tal pé de sapato. A frase do dono do sítio, repetida depois pelo moleque, sobre a esquisitice do achado, aguçou-lhe a curiosidade. O moleque estava jogando bola com seus amigos em um campinho improvisado quando respodeu ao chamado de Hélio.

          — Mas entrar no mato agora? — aborreceu-se o moleque — não pode ser amanhã?

          O rapaz da cidade não disse nada, apenas acenou uma nota de dez cruzeiros, e mais que depressa, estavam a caminho. Subiram o carreador em direção a porteira, depois andaram à direita beirando a cerca, embrenharam-se por uma trilha mal definida e descambaram por uma barroca até o fundo de um grotão.

          — Foi aqui que peguei uns passarinhos outro dia. Lembro que vi o sapato depois que coloquei a armadilha, quando subia o barranco. Vamos ter que procurar um bocado, se é que algum animal já não o arrastou por aí.

          Mas não demorou muito, deram com o pé de sapato enroscado no galho de um arbusto, semi-escondido entre as folhas. Era um sapato dourado. Hélio teve um calafrio. Era exatamente igual àquele que a loura apoiava no cepo quando lhe pediu carona. Mas, é claro que não podia ser, pois se lembrava muito bem que ela tinha os dois pés calçados, ou será que não? O cérebro da gente, às vezes, preenche por conta própria uma imagem que deveria ser óbvia. Ficou ali com aquele sapato nas mãos, sob o olhar inquisitivo do moleque, sem saber o que pensar. Depois, esticando os olhos mais para o fundo da grota, perguntou, apenas para sair de seu marasmo:

          — Foi ali que você armou sua arapuca? Ali onde o chão está mexido, sem mato?
          — Não, não foi ali não. Foi mais adiante, junto ao barranco do outro lado. Aquele limpo ali deve ter sido causado por algum animal que se esfregou lá — esclareceu o sabichão.
          — Vamos até lá dar uma olhada — disse o moço da cidade como se tivesse tido, subitamente, uma inspiração.
          — Pois vamos.

Desceram novamente a curta e acidentada ravina e foram examinar o lugar da terra revolvida. Retiraram uns poucos ramos secos e sob eles renasciam os brotos da relva que tinha sido revirada.

—Parece que enterraram alguma coisa aqui—disse o moleque, fantasiando algum tesouro.

Hélio estava inquieto. Tudo aquilo era muito estranho: no meio da mata, em pleno domingo, escurecendo, ele com um sapato de mulher na mão, e um moleque cutucando a terra fofa com uma lança de eucalipto. De repente, um berro:

—Tem alguma coisa aqui!
—O quê? Onde? —indagou o rapaz. Tem o quê?
—Não sei. Espera aí. Vou cavoucar mais embaixo.

          O moleque enfiou a madeira na terra e percebeu que ela resvalou em alguma coisa e entrou por baixo de outra.

          — Deixa eu te ajudar — acorreu o rapaz do fusca, indo auxiliar o moleque a forçar para baixo o tronco feito alavanca.

          Estupefatos, viram erguer-se da terra um pé descalço e, depois, envolta em um trapo vermelho, os restos mortais de uma mulher.

          Nunca mais se ouviu por ali histórias da loura do asfalto depois que seu corpo foi resgatado pela família e sepultado em sua terra natal.

 
HFigueira
Enviado por HFigueira em 06/06/2011
Reeditado em 01/02/2012
Código do texto: T3017402
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