TARA POR MANDIOCA
T A R A P O R M A N D I O C A
Nem sei como começar esta narrativa, pois a estória é maçante e sem graça, todos os capítulos estão arrolados num só, mesmo porque eu nunca fui capaz de separar as páginas na conformidade com as regras gramaticais e literais.
E, como dizem os mais-velhos, foi assim que aconteceu.
Sabe aquela pessoa pacata, calma, que transparece muita lucidez em tudo o que faz? Então, assim é o Zé.
Sujeito cem por cento. Bom de papo, sempre se deu bem com as meninas de sua época, (com ressalvas); um cara engajado no meio em que vive, que sempre está disposto a tudo e topa qualquer parada. Cidadão culto, se é que quem sabe escrever o nome e fazer três das quatro operações (dividir ele não divide com ninguém) é culto. Ator coadjuvante de sua própria modéstia e simpatia, na merdinha que é sua vida.
Fiquem atentos! Sempre tem um “mas” e/ou um “porém” na vivência de cada individuo e/ou coisa; incluindo pequenos ouriços, grandes vírus, seixos, titica de galinha, e... Mas como de médico e louco, todos têm um pouco, no caso do Zé não seria diferente.
E, usando de minha parte de médico, diagnostiquei na bucha: demência. Ou uma patologia que seja similar à demência. Tenho altos conhecimentos em primeiros-socorros, lógico, não tenho o título de doutor, mas dou minhas receitas e cassetadas.
Com sua mansidão ímpar, um belo dia começa a me falar de... de... certos problemas psicológicos, de certas manias cotidianas.
Tirador de sarro de primeira categoria; não acreditei muito. Achei que ele, fanfarrão nato, estava de brincadeira. Mas não estava.
O fato é que o Zé falava sério. Sério até demais.
Um dia, fomos ao supermercado fazer essas compras corriqueiras. E, entre carnes de porco; vaca, peixe, frango, yogurtes, eis que, para minha surpresa, na parte de frutas e verduras ele pára e fica. Analisa. Não se move. E olha. E como olha!
- Que foi, Zé?
- ...
- Cara, o que é que você tem? Acorda!
- Hã... que?
- Como assim "que"? Cê tá dormindo?
- Não.
- Então vamos, oras.
- Cara... olha só que coisa mais linda isso aqui.
- O quê?
- Isso.
- Onde?
- Aqui. Você é cego?
- É que tem uma porção de coisas para ver.
- Ah, meu mundo pára quando vejo uma assim.
- Como é que é?
- Olha só a cútis dela?
- Dela? Dela quem? Não tem ninguém aqui.
- Pô, não acredito!
- Eu que não acredito.
- Meu, olha só isso aqui.
- Você tá delirando, né?
- Mais ou menos...
- O que é que você olha?
- Sim! Olha só que suculência de mandioca, olha!
- Como assim?
- Olha só o design arrojado dela...
- Meu Deus...
- A pele...
- Ai...
- O formato...
- Cara, que isso? Desde quando você tem atração por mandioca?
- Bem...
- Como assim, “bem”?
- Como vou te explicar.
- Meu Deus... Eu pensei que você estava brincando.
- A minha caída por mandioca começou logo no início da puberdade, saca?
- Não... não saco nada.
- Cara, não é nada traumático. Relaxa.
- Eu estou é com medo de você.
- Fica tranqüilo, não estou interessado em sua cara e nem na sua mandioca.
- E mesmo que tivesse, eu sou muito macho para te lascar a mão.
- Sim... sim... Posso explicar como tudo começou?
- Pode, claro. Mas fale baixo. Vai que alguém nos ouve.
- Tudo bem... Eu falava que tudo começou na minha puberdade. Não sei se você sabe, mas meu pai era feirante.
- Ele tinha barraca de verduras?
- Não! Ele tinha uma barraca de roupas usadas, com boas variedades. Só que, a barraca ao lado, era uma banca de frutas e verduras. Milhões delas. Abóbora, abacaxi, banana, cará, jiló, melancias, melões, peras, e...
- Onde entra mandioca?
- Vi você pegar uma. E que mandioca!
- Vamos parar por aqui.
- Não. Não era uma mandioca qualquer, sabe? Era uma toda exótica, imensa, com pé e cabeça, encorpada...
- Cara, não começa complicar.
- Era eu fechar os olhos e logo via aquela mandiocona, na sua mão.
- Não se empolga.
- Relaxa... você tem que entrar na onda da mandioca, meu.
- Eu o quê?!
- Não necessariamente entrar na minha, mas adorá-la, saca?
- Cara, muito estranho tudo isso. Diz que é uma brincadeira, uma pegadinha, sei lá. Ou então me deixa fora!
- Pô, não é não, meu. É papo firme.
- Credo...
- E por falar em firmeza, a mandioca não pode ser mole nem muito pequena. Não há coisa pior que uma mandioca flácida.
- Daqui a pouco você falará que mandioca tem celulites.
- Não chega a esse extremo, mas estrias têm.
- Ou que é melhor que mulher.
- Não exagera. Mas, um dia desses, estava em casa com a Rosa e...
- Tô até com medo do que você vai falar.
- Bem... tivemos uma certa briga.
- Sei... sei... Mas não foi por causa da mandioca não, né?
- Não... Bem, mais ou menos. Mas o fato é que tive que dormir no sofá da sala e trancado, isolado do mundo.
- Pô, mas melhor que o chão frio da cozinha.
- É verdade. Só que passei fome à noite, pois não tinha jantado.
- Credo que neurótica. Para a Rosa trancar tudo? Medo de você dar uma escapulida na madrugada?
- Não, ciúmes mesmo.
- Como assim?
- Ela tem medo que eu a troque por uma mandioca.
- Ela tem razão. Esta tara por mandioca não é normal.
- Exagero de vocês.
Seu sonho era conhecer a África, quando teve oportunidade não desperdiçou. Mesmo não dominando o idioma, sabia que como bom brasileiro daria um jeito. Ele se virava. Quando chegou à imigração entregou o passaporte ao funcionário e começou o interrogatório (traduzido aqui para melhor entendimento)
- Está no Zaire com qual objetivo?
- Hem?
- Negócios ou Turismo?
- Hem?
- Veio trabalhar?
- Claro!
- Com que você trabalha?
- Hem?
- Com que você trabalha? Você tem um visto de turismo, tem certeza que veio a trabalho?
- Manaíba...
- Você fala o africânder?
- Ocapa!
- Então me responda. O que veio fazer aqui?
- Mandioca...
- Ok, então veio conhecer a nossas mandiocas.
- Macacheira...
- Quantos dias pretende ficar?
- Aipim....
- Não senhor, o senhor não me entendeu, quantos dias vai ficar por aqui. Quando vai voltar para o Brasil?
- NÃO...
- COMO ASSIM NÃO?
- Mandioca!
- Quando meu senhor? Quando?
- Hem?
- Vou anotar uma permanência de vinte dias que é o padrão.
- Manaíba!.
- Precisa de mais dias?
- Aipim!
- Pronto! Vinte dias.
- Não...
- O senhor acha que estou aqui para brincadeira?
- Ocapa!
- Então o quê?
- Mandioca.
- Já chega, não estou aqui para isso. Vou chamar os guardas se você não parar de brincar. Vai continuar brincando?
- Macacheira...
- Você quem pediu, agora terá que se entender com a polícia lafandegária Zairenses, e espero que com elas ao menos demonstre um pouco mais de respeito pelo nosso país.
- Hã?
Os oficiais chegaram e o deportaram. Ainda no avião, voltando para o Brasil pôde de soslaio enxergar o serenghete, o maior celeiro de mandioca do mundo.
O Zé chega exatamente na sexta-feira antes do carnaval.
E fica triste quando chega a terça-feira de carnaval. Época de festa, de alegria; com blocos, trio elétricos, azaração, desfiles, bailes e muito mais. Para quem gosta, ele não. Ele gosta é da colheita da mandioca, aproveita os cinco dias úteis ou até a semana. Descansar nem pensar.
Mas independente do que se façam no carnaval as pessoas gostam de se alegrar, parar alguns dias para ficar com amigos e fazer novos amigos. Quatro dias de sorriso no rosto. Menos para o Zé.
Porém na atual situação brasileira, carnaval é uma época mais para esquecer do que se alegrar. Esquecer do dia-a-dia, esquecer da política, esquecer da economia, esquecer do trabalho e esquecer da violência.
Nas páginas dos jornais, pelo Brasil inteiro, o que se vê são sempre as mesmas coisas. Parece que nem trocamos de governo, parece que nem trocamos de ano, parece que não queremos trocar de modelo de país. A primeira manchete é do caso da mandioca de seis arroubas. Pessoas insanas não acreditam. Mas isso não é coisa de se admirar. Em Xixá produziu uma que pesava sete arroubas. Tamanho assim somente na terra do Zé.
Também tem destas coisas e até Deus piora. Vivemos enjaulados em nossos apartamentos e casas; nos carros com vidros fechados, enquanto os bandidos estão soltos na rua, por que não admitir. Todos precisam é de uma baita mandiocona?
A violência chegou num ponto tão crucial que temos que guerrear contra os traficantes e contrabandistas, (de mandioca, é bom se diga e deixe tudo às claras) e agora também contra as milícias que querem roubar do povo o único bem que dá de rachar o chão: mandioca!
A polícia e o Estado terão muito trabalho para conter a população e os tatus que querem por que querem comer mandioca. Teremos que cobrar muita atitude dos políticos nas eleições, para que eles não deixem faltar a mandioca nossa de cada dia. Violência sim! Mas sem mandioca não!
É uma questão de vontade de resolver só que até agora, nenhum político demonstrou isso, assim quem tem sua mandioca que a guarde com carinho, mas se de tudo tivermos que enfiá-la no rabo dos políticos, que assim seja!
No lado da economia, tudo na mesma, ninguém quer arcar com as despesas na plantação da mandioca. Vamos pagar mais pela farinha, enquanto o governo brinca de cortar o orçamento que eles mesmos fazem, sem pensarem na mandiocada que vão levar.. Como é que se faz um orçamento para depois cortar? Não é mais fácil fazer direito da primeira vez.
Que plano mais maluco de crescimento é este que vai levar os plantadores de mandioca a falência? No papel é uma beleza, mas na hora de enviar a mandioca no buraco quero ver quem é que agüenta. Óbvio que quem vai levar mandioca é o povo (no rabo), e mais uma vez vai dançar no pau da goiaba.
Tem gente que não aprende. Isso de o buraco ficar intacto, enquanto o sistema de saúde vai para o brejo, só podia ser coisa de congressista. Os parlamentares brincam de mudar leis para deixar mais duras, mas a única coisa que endurece é a mandioca. Eles se esquecem que as leis que temos hoje não são aplicadas, só se aplica à mandioca. E não fazem nada para mudar, parece até que gostam de levar mandioca.
Mas é tempo de festa e de alegria. Alegria para quem vende drogas, rouba carros, para quem tem mandioca, a leva e alegria para os de bolsos cheios de dinheiro desviado. Enquanto isso o povão, brinca com a sua mandioca e com a dos outros se faz tapioca.
É muita mandioca para mandar na situação, já que a oposição vai levando de teimosa e de pirraça, e a gente vai tomando a mandioca na boca, que se não ninguém segura esse rojão.
(janeiro/1995)