O dono do mundo

A doméstica Cidinha e o menino Pedrinho seguiam de mãos dadas pela calçada às duas horas da tarde, ambos felizes. A Cia. Circo & Parque de Diversões Família Soledade havia chegado à cidade e a patroa deu permissão para que os dois fossem ver os trabalhadores montar o picadeiro, as engenhocas e as barracas. A ordem de dona Alberta era para que tomassem um táxi e assim entregou cem reais à moça, para a corrida e guloseimas – mas a empregada tinha outros planos para a grana, depois, o menino estava adorando a caminhada – ele precisava sair daquela absurda redoma de proteção em que vivia graças à obsessão dos pais. No fundo, Cidinha tinha pena da criança, o moleque não podia andar descalço nem dentro de casa, não podia tomar banho frio, brincar no quintal ou jogar bola com outros guris da mesma idade. Aos sete anos, Pedrinho nunca havia se aventurado nas ruas sozinho, nem mesmo pra comprar uma fruta na quitanda da esquina.
Em meia hora chegaram ao largo, os dois se maravilharam com o picadeiro circular sendo erguido, viram a roda gigante na fase final de montagem, os carrosséis com seus cavalinhos e cisnes, o túnel do amor e a casa de espelhos sendo consolidados por um batalhão de homens fortes e afobados; Cidinha trocou olhares sedutores com o homem tatuado, pagou dez reais para tocar no rosto da mulher barbada (ouvira dizer que dava sorte); Pedrinho apreciou – gratuitamente – o homem gigante exibir os músculos flexionando os braços; ficaram circulando entre os curiosos e os trailers dos artistas, xeretaram pelas barracas de tiro ao alvo, de arremesso de dardos e lançamento de argola. Mas o que deixou Cidinha caída de fascínio foi a tenda azul recoberta de grandes estrelas prateadas. Sobre a abertura de entrada um anãozinho vestindo calça xadrez estava trepado numa escada de armar e fixava uma placa dourada com os dizeres em letras roxas: Madame Esmeralda, a Cigana que norteia o futuro. Ficaram parados observando o carinha até que o trabalho fosse terminado.
– A cigana já está atendendo? – Cidinha perguntou logo que o homenzinho desceu para o chão. O anão mediu-a, analisando os seios fartos, as coxas fortes, sorriu – tinha um bonito sorriso.
– Está sim, pode entrar.
Cidinha devolveu o sorriso ao sujeitinho, contente com o brilho de cobiça nos olhos dele, era bom sentir-se desejada, mesmo que fosse por um anão. E como é que seria uma transa com um indivíduo como aquele? perguntou-se, picada pela curiosidade. Com Pedrinho agarrado à sua mão, Cidinha entrou na tenda – estava tudo envolvido por uma claridade opaca, cinza-escura. Uma mulher enorme, usando um espalhafatoso vestido amarelo de babados e um turbante vermelho, estava sentada em frente a uma mesinha coberta com uma toalha de veludo negro com desenhos em prata de signos do zodíaco, hexagramas, yin-yang, pombas com ramo, cão tricéfalo, hieróglifos da fortuna, pirâmides egípcias, olho de Lúcifer e outros emblemas místicos indecifráveis. Mandou que Cidinha se sentasse numa cadeira a sua frente.
– Negócios ou amor? – perguntou.
– Sexo. Os meus últimos homens ou eram boiolas enrustidos, ou brochas ou tão ruins de cama que tenho vontade de chorar só com a lembrança.
– Muito bem. E essa criança?
– É filho dos meus patrões.
A cigana olhou atentamente para Pedrinho, estudou suas roupas bem passadas, os sapatos pretos brilhando, o cabelo emplastado de gel.
– Filhinho da mamãe?
– E como! Se pudesse, dona Alberta ainda dava o peito pra ele.
– Coitadinho!
– É sim, eu morro de dó, mas não posso fazer nada, sou apenas a empregada.
A cigana voltou-se para Pedrinho:
– Você pode esperar lá fora um instantinho?
Pedrinho acenou com a cabeça e saiu da barraca. O anão estava andando em círculos logo ali, um baralho ensebado nas mãos.
– Quer ver umas mágicas? – perguntou.
– Quero!

Dez minutos após Cidinha saiu da tenda, sorriu esplendorosa para o homenzinho.
– Obrigada por distrair o menino – disse.
– A gente brincou de mágica. Você gosta de mágica?
– Adoro! – respondeu Cidinha. Voltou-se para Pedrinho: – A cigana quer falar com você. Vai, entra lá. E olha, se quando sair não me ver, não se preocupe, eu vou dar uma voltinha por aí. Me espera aqui na entrada, ouviu bem? Não mova um passo sem mim, entendeu?
– Entendi – disse o menino. E entrou na barraca. A cigana mandou que ele se sentasse à sua frente e pediu que lhe contasse como era o seu dia a dia. Pedrinho não tinha muita coisa a dizer, exceto que ficava muito tempo na janela olhando a rua onde meninos brincavam de pique, andavam de bicicleta, jogavam bola; que passava algumas horas vendo tevê, mas só podia sintonizar o canal Discovery Kids, de desenhinhos para crianças em idade pré-escolar. O que ele mais desejava? Bem, o seu sonho era ser igual aos moleques que se divertiam em frente de sua janela. E também tirar as rodinhas traseiras de sua bicicleta e se aventurar num passeio pela calçada, ele só podia pedalar nos limites do quintal.
A cigana Esmeralda abriu a gaveta da mesa, dela retirou um saquinho do tamanho de uma moeda de um real, um saquinho verde de linho incrustado de pedrinhas de vidro coloridas.
– Isso se chama patuá do poder. Carregue sempre consigo e seus sonhos mais bonitos vão se realizar – disse a cigana.
– Não tenho dinheiro pra pagar.
– Não quero seu dinheiro.
Pedrinho pegou o patuá, meteu-o no bolso da calça, agradeceu à cigana e saiu da tenda. Como não via sua acompanhante, ficou parado por ali, observando um malabarista que se exercitava com alguns bastões de madeira. Estava assim, totalmente absorvido pelo encantamento produzido pela agilidade e coordenação do artista quando ouviu risos fortes vindos de um trailer próximo. Aquelas risadas eram de Cidinha. Minutos depois a moça saiu do trailer, tinha o rosto afogueado, os cabelos revoltos, e abotoava a blusa com um grande sorriso de satisfação. Logo atrás dela surgiu o anãozinho, vestindo a camisa. Cidinha caminhou ao encontro de Pedrinho, tomou-o pela mão, acenou muitas vezes para o homenzinho e foram para casa.

Na manhã seguinte o pai passou afetuosamente o pente pelos cabelos úmidos de Pedrinho, com paciência recolocou nas casas os botões da camisa escolar que estavam fora do lugar, amarrou-lhe os sapatos sociais. Foram ao quarto, o pai deu um beijo na testa da mãe, ainda enrolada nos lençóis, esta desejou que ambos tivessem um bom dia e ajeitou-se melhor na cama para continuar dormindo. Saíram da casa, entraram no carro – o pai deixou Pedrinho na porta do colégio e foi para o seu consultório de advocacia.
No pátio do colégio havia um burburinho, um clima festivo, uma alegria inusitada pairando no ar. Pedrinho soube então que os professores haviam entrado em greve por reposição salarial, as aulas estavam suspensas. Sem carona, Pedrinho decidiu retornar a casa a pé. Parou numa padaria, comprou com dinheiro da mesada um pedaço de torta de maçã, foi comê-lo sentado no banco de uma pracinha. Havia alguns guris brincando de skate, garotos de sua idade. Um deles se aproximou:
– Por cinco reais deixo você brincar dez minutos – negociou.
– Meus pais não me deixam andar de skate – ele disse.
– E daí? Eles não ficam sabendo.
Num assomo de coragem, Pedrinho tirou cinco reais do bolso e pagou para brincar. Não encontrou nenhuma dificuldade, tinha equilíbrio perfeito, seus pés na prancha pareciam colados tal a intimidade com o brinquedo. Manobrou durante dez minutos, marcados no relógio do guri. Pagou mais dez minutos pelo prazer da brincadeira, ainda que ficasse sem um níquel da mesada. Vento no rosto, adrenalina a mil, Pedrinho pela primeira vez sentiu o gostinho da liberdade proporcionada pelo esporte radical.
Cansado, vermelho de esforço físico, Pedrinho voltou para casa, a mão no bolso segurando fortemente o patuá do poder – para ele, aquele grande momento de mais pura alegria só tinha acontecido graças à magia do seu fabuloso amuleto. Cidinha arregalou os olhos ao vê-lo adentrar a cozinha.
– O que você tá fazendo aqui, menino?!
Pedrinho riu da pergunta idiota.
– Se você não sabe, eu moro nesta casa.
Pegou uma latinha de Coca Cola no refrigerador e quando estava prestes a abri-la, ouviu que vinham do quarto da mãe uns ruídos estranhos, olhou Cidinha, no momento lavando alguma coisa na pia.
– Você ouviu esse barulho?
– Nesta casa eu sou surda e muda – respondeu Cidinha, sem se voltar.
Pedrinho colocou o refrigerante sobre a mesa, foi ver o que era. Empurrou a porta, apenas encostada, e viu a mãe nua na cama, as pernas abertas e entre elas o corpanzil do Dr. Santoro, o pediatra, suas grandes costas de um branco leitoso ondulando com o trabalho da musculatura sob a pele. A mãe tinha o rosto crispado e de olhos fechados murmurava palavrões, suas ancas enlouquecidas em força de guindaste soerguiam em ritmo alucinante as nádegas do médico. Chegou ao gozo com ganidos de cachorrinho recém-nascido, abriu os olhos e viu Pedrinho, ali, encostado no batente da porta. O choque a deixou paralisada, os olhos fitando-o pareciam querer saltar das órbitas. O Dr. Santoro sussurrou um “o que foi, Alberta?” e quase que imediatamente sua cabeça girou em direção à convergência do olhar da amante. Saltou como um sapo para o chão e de pé tentou proteger com as mãos o pênis subitamente mole e ainda pingando sêmen, enquanto Pedrinho sentia que o cérebro do pediatra trabalhava a toda para encontrar algumas palavras na boca aberta por força da surpresa – a mãe continuava inerte, paralisada, as pernas obscenamente abertas, os pelos negros da vagina banhados pelo esperma transparente a refletir a luz da manhã entrando pelas cortinas diáfanas do quarto.
Assim que a mãe saiu do choque, atabalhoadamente enrolou-se no lençol – o médico por esse momento já vestira as calças e agora tentava abotoar a camisa branca. Silenciosamente Pedrinho se retirou, fechando a porta.
Na cozinha ignorou Cidinha com seus olhos interrogativos, pegou a latinha de Coca Cola em cima da mesa e foi para o seu quarto. Quinze minutos após a mãe batia na porta.
– Precisamos conversar, Pedrinho! – bradou duas ou três vezes. O menino não respondeu. Só foi deixar o quarto uma hora após. Na sala a mãe, de calcinha e sutiã, estava sentada no sofá no sentido do comprimento, passando esmalte nas unhas dos pés. Fitou o filho, de pé a observá-la.
– Vai contar ao seu pai? – ela perguntou suavemente.
– Se você me der um skate, eu não conto – propôs Pedrinho.
– Combinado – ela disse, e voltou a esmaltar as unhas dos pés. Pedrinho foi para a garagem tirar as rodinhas laterais da roda da bicicleta. Antes de começar o trabalho, pegou no bolso o patuá do poder, desenrolou o cordão e o pendurou no pescoço. Em seguida levou o saquinho enfeitado de pedrinhas de vidro coloridas aos lábios e o beijou fervorosamente. Agora, ele sabia, era o dono do mundo.