Final de Campeonato

Domingo desgraçado de final de campeonato de futebol. Saí pra bater perna pelo Centro Velho; aproveitar as ruas vazias, graças aos jogos televisionados. O meu alvo era um barzinho em que, miraculosamente, o dono repudiava televisão. Barzinho vagabundo, sujo, tendo como freqüentadores aqueles tipinhos roquenrou demais, de visual extremo; correntes, batons pretos, roupas de bruxa e camisetas pretas com estampas ininteligíveis de nomes de banda. Lá acabei conhecendo uma fulaninha até que bonitinha. Não precisei de muito esforço pra levá-la na conversa, bastou o de sempre: me passar por intelectual indicando livros, mentir falando que eu tinha um filho, dar uma de coitado e ironizar tudo o que de ruim acontecia comigo - isso sempre funciona com derrotadas.

Eu só queria matar o tempo e escapar da grande concentração de torcedores fanáticos que tornava o meu bairro um verdadeiro inferno: nunca imaginei que apenas três garrafas de cerveja em quinze minutos seriam argumentos suficientes pra entrar num motel com alguma garotinha rebelde.

No motel - uma espelunca pulguenta de beira de estrada - fomos muito mal-atendidos pelo recepcionista, que trajava a camisa de um dos times finalistas. Acabou que ele deu a chave de um quarto mais "luxuoso" - aqui o "luxo" se compreende na forma de uma banheira trincada e de uma televisão com esponjas de aço penduradas numa antena com base de formato triangular e numa cama de casal mambembe de lençól cheio de manchas de esperma ressecado - e cobrou o valor de um quarto comum - e Deus que me livre de um dia saber como é esse "quarto comum"!

Como era de se esperar, não houve relutância em ficarmos nus em pêlo e começarmos a trocar carícias com as mãos. Tudo parecia estar indo bem, até que ela resolveu abrir a boca e fazer uma pergunta deveras estranha, dado todo o contexto que nos colocou ali, naquela cama pulguenta:

- Você acha que uma mina que vai com o cara logo no primeiro encontro é vagabunda?

- Mas é claro - respondi sem pestanejar.

- Então eu sou uma vadia!?

- Só pode ser! - volvi - Eu não sei porra nenhuma sobre você e já me vejo com dois dedos na sua buceta, baby.

- Machista! - gritou ela - E você, se acha bom demais, não é?

- Não disse isso - respondi calmamente - mas também não fiz tal pergunta... Queria o quê, caralho, um pedido de casamento?

E soltei uma risada estrondosa. Em seguida baixou um silêncio opressor, denso. E fez-se ressoar o estalido de sua mão aberta no meu rosto. Ato contínuo, desferi um direto na ponta do queixo e ela caiu desfalecida ao lado da cama.

Puta ousada!

Voei pra cima do corpo dela, e, utilizando das reminscências dos meus treinos de jiu-jitsu, estrangulei-a com um ezequiel.

Já vestido e extremamente ressabiado com o que havia feito - ah!, a soltura do assassino que em mim residia! -, abri sua bolsa e recolhi um maço de notas que lá encontrei - um valor bem considerável, inclusive!

Fechei a porta do quarto e desci as escadas, sentindo certo prazer misto com medo ao me ver como o criminoso que eu acabara me tornando de uma hora para a outra.

O jogo ia bem: o time do camarada recepcionista havia empatado o placar e no exato instante em que aportei no balcão da recepção, um dos atacantes foi vítima de um carrinho maldoso e o juíz consolidou o pênalti.

Aproveitando da religiosa concentração do recepcionista na cobrança do pênalti, depositei a chave do quarto na gavetinha em que estavam nossos documentos junto com o valor cobrado pelo aluguel do quarto; retirei-os (os documentos) de lá e coloquei-os no bolso da minha calça. Apesar de não fumar, também peguei o isqueiro do fanático recepcionista.

Quando o apito foi dado e o jogador correu pra chutar a bola, eu já estava bem longe dali, dentro de um táxi. Um VW Gol. Poético!

Pedi pra parar em uma praça com uma mini-ramp no meio, paguei a corrida e saltei. Alguns moleques tentavam seus primeiros drops e, ao lado da rampa, alguns usuários acendiam suas velas.

Retirei o documento da garota do bolso, sentei-me num dos bancos e acendi o isqueiro nele. No documento, eu quero dizer.

Observei sua data de nascimento sendo lambida pelas chamas.

A moça, muito mais nova na fotografia, me fitava com um meio sorriso. Seu sorriso caiu pro lado esquerdo, como num derrame. Depois a testa ficou chamuscada.

"Você acha que uma mina que vai com o cara logo no primeiro encontro é vagabunda?"

Oras, mas nem a pontada de remorso que parcamente pungia nalgum canto recôndito da minha mente conseguia atenuar a minha perplexidade diante de uma pergunta tão simples e óbvia: por que diabos uma rapariga que se entrega e escancara as pernas a um desconhecido esperava uma resposta avessa àquela que eu havia dado?

Pergunta capciosa: é sabido que homem não tem lá muitos escrúpulos - ainda mais um que vai logo de primeira com uma desconhecida -, mas, no entanto, ainda há o jogo: a transa estaria em jogo! Que homem com o pau em riste que se preza poria de lado sua opinião contrária, quando o risco de perder uma trepada é altíssimo?

Olhei pro céu: coisa linda de Deus!

Levantei-me e me obriguei a descer a rua, enquanto uma fila de carros barulhentos subia buzinando e chacoalhando bandeirões do time vitorioso...

"Machista!"

"Que se fodesse!", murmurei e cuspi no asfalto...

17/05/2011 - 15h03m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 18/05/2011
Código do texto: T2976942
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