O Chamado
- Filho, acorda, estou precisando de você.
No escuro do quarto Alberto escutava aquela voz doce lhe chamando. Parecia impossível. Como uma mulher teria chego ali?
- Filho! Filho! – continuava a voz.
Alberto não parava de andar pelo escuro gramado, na periferia da densa floresta que ficava a pouca distância do pátio do mosteiro onde agora residia. Estava frio e a nevoa da madrugada dificultava ainda mais a visão, mas a voz... que voz.
- Venha filho.
Sem saber porque Alberto entrou na densa floresta. Apesar dos animais selvagens que lá poderia encontrar, apesar dos medos que sempre lhe incutiam e dos mistérios e brumas que possuía aquela floresta, ele seguiu o caminho tortuoso e difícil pelas pedras e árvores frondosas de raízes retorcidas, escutando apenas o pio das corujas... e a voz.
Sentiu que em poucos metros estaria uma clareira, mas se deteve por instantes. Quando resolveu ir mais adiante, percebeu uma mão em seu ombro, que não o deixava avançar. Tentou lutar contra ela, mas...
- Frater! Frater Albertus! Acorde! – dizia-lhe outro monge.
- Sim, sim! – respondeu Alberto acordando no susto.
Alberto apesar da noite fria que havia feito, estava suando feito um cavalo de carga, depois de muito esforço.
- Que aconteceu Albertus? Pareces estar doente?
- Não nada, acho que foi apenas um sonho. – mencionou Alberto, já se levantando prontamente.
- Tenha cuidado padre. Os sonhos podem ser influências do demônio. Ande rápido, você está atrasado para o desjejum.
A indagação de Michel e seu olhar de sarcasmo demonstravam que Alberto possivelmente enfrentaria problemas por conta da influência do invejoso Michel.
O sonho não saia de sua cabeça e rapidamente, ao mesmo tempo em que recordava partes do que vivenciou na noite anterior, Alberto colocou suas vestes habituais e correu pelos desertos e silenciosos corredores que desembocavam na sala de refeições.
Quando adentrou na sala, de súbito pode perceber os olhares que se direcionavam para ele. Parecia ter ele cometido um pecado mortal. Que teria feito ele? Seria essa reação fruto do veneno de Michel? E o grande mistério de todos, de onde viria aquela voz?
- Venha filho, venha!
Novamente a voz estava em seus sonhos e esta noite já era a quinta na seqüência. Seus pudores em relação à origem da voz e ao que os outros monges, inclusive os superiores, iriam pensar estavam sendo vencidos e ao invés de andar pelo escuro gramado, não tão escuro pela lua cheia no céu, Alberto hoje corria. Corria também pela floresta, só se detendo pouco antes da clareira. Nesta noite, além das corujas e da voz, ele ouvia cânticos.
Uma cerca viva o separava da clareira e ele circundou toda a clareira desesperadamente tentando achar uma entrada. Quando reparou, pelo aspecto das árvores, que tinha percorrido todo o perímetro da clareira, sem sucesso, ele novamente se concentrou nos cânticos.
Não eram em latim, como os outros padres o ensinaram e ele já estava acostumado a recitar, nem tampouco em sua língua natal, o inglês, mas em alguma outra língua antiga perdida no tempo e espaço, mas era como se ele entendesse tudo o que estava se passando lá dentro.
- Como conseguirei entrar? – perguntou Alberto para si.
- O que você quer aqui? – novamente a voz se fez presente.
- Vim porque você me chamou – e somente agora Alberto se dava conta de ter sido esta a primeira resposta sua , a voz.
- E se eu te levasse para o fogo, você iria?
- Não sei quem é você e nem tampouco porque estou aqui. – foi sua resposta meio sem entender a pergunta feita pela voz.
- Por este motivo é que está do lado de fora e não aqui dentro.
Cada vez mais confuso Alberto tentava se concentrar.
- Sinto a ternura em sua voz e sei que não está me enganando.
- Sim, isto é verdade.
- Não te conheço, mas sei que te amo.
- Que amor é esse Alberto?
- Como que amor é esse? Só existe um único tipo de amor. – a resposta de Alberto causou ainda mais dúvidas dentre dele mesmo.
- Manifestas o mesmo amor por teu pai ou tua mãe, tua filha, teus irmãos e irmãs, plantas, animais e por toda a criação?
Alberto vestia a máscara da confusão.
- Me ajude por favor! – exclamou ele quase que desesperado.
- É isso que estou fazendo Alberto meu filho, só que também eu preciso de ajuda.
- Como posso te ajudar então?
- Amando.
- Nem sequer te conheço, mas sei que te amo. Mesmo sabendo o tamanho do pecado que é te amar.
- Pecado? O que é isso?
- Ir contra os desígnios de Deus.
- Que Deus é esse que te impede de sentir o melhor dos sentimentos?
- Como que Deus é esse? O único Deus, o Pai.
- Então teu pai te impede de sentir amor e de conhecer na verdade teus irmãos e irmãs?
- Quem é você?
- Esse que tu chama de pai, Alberto, é nada mais do que uma visão errada e má interpretada da minha verdade.
Alberto estava sentindo seu mundo cair. Sabia que aquela terna voz expressava não só como ela chamava de “a minha verdade”, mas a única verdade, e que ele passou a acreditar a partir de então.
Caiu no solo de joelhos, levou as mãos a cabeça, algumas lágrimas rolaram.
Quando abriu seus olhos, percebeu que estava na parte de dentro da cerca viva e viu então a linda jovem, dona da voz, que lhe estendeu a mão. Se ergueu, se abraçaram e ela o carregou para o centro, junto de outros inúmeros membros dentro daquele círculo.
Cantaram, beberam, comeram, dançaram e rezaram. Louvaram a criação. A fogueira ao centro do círculo sagrado e o cheiro de incenso, completavam a atmosfera mágica.
Era como se horas tivessem transcorrido, e ele se sentou junto da fogueira, mexendo em um dos galhos que avivavam o fogo. Ela chegou, em seu longo vestido branco e se sentou a seu lado. Alberto quebrou o silêncio.
- O que aconteceu?
- A mais pura manifestação de fé e amor.
- Senti como se estivesse em uma das missas ou uma espécie de rito sagrado, só que...
- Só que todos eram sacerdotes e sacerdotisas.
- É estranho. – Respondeu Alberto sacudindo a cabeça.
- Vem sendo assim a muitos séculos Alberto, mas para você é diferente.
- É, diferente.
A bela mulher se despediu com um leve toque dos lábios nos seus e povoou os seus sonhos durante os próximos meses, enriquecendo seus pensamentos e seus escritos.
Alberto se sentia cada vez melhor, mas naquele dia ele sabia que algo diferente aconteceria.
- Frater, sei que em você posso confiar. Aqui estão cópias de meus relatos, meus sonhos e minhas idéias. A meses estão me olhando com desconfiança e estou com medo do que isso possa significar num futuro próximo. Analise-os com cuidado e faça o possível para que a verdade seja pública.
Suas palavras tiveram apenas um leve sorriso de cumplicidade e um olhar de ternura como resposta. A porta da cela se abriu, dando tempo apenas para que o padre que recebia os manuscritos, depositar-lhes por entre as vestes e vários outros padres, alguns desconhecidos para eles, entraram.
- Albertus, o cardeal de Albuquerque, oficial da Santa Inquisição, veio especialmente para vê-lo.
Seus olhos se estatelaram e a partir daquele momento nenhuma outra palavra se ouviu de sua boca.
O julgamento correu rápido e por não pronunciar uma só palavra em sua defesa, a condenação como herege se transformou em execução ainda na mesma semana. Seu destino, era a fogueira, assim como o de outros que negavam ao Cristo e a Santa Igreja.
Mas dentro de seu pensamento sua voz continuava a bradar.
- Mãe, onde está você neste momento?
- Onde sempre estive. Dentro de seu coração. Uma vez te fiz uma pergunta que você deixou sem resposta.
- Qual?
- E se eu te levasse pro fogo, você iria?
- Talvez por isso tenha me calado. Hoje sei que morrerá meu corpo, mas libertarei minha alma e minhas idéias, inspiradas por Ti, se perpetuarão. Confio no padre Henrique e acho até que ele é simpático com meus pensamentos.
Alberto ganhou novo sorriso como resposta e caminhou feliz em direção a fogueira. Amarrado no mastro, embebido em álcool, sentia suas carnes se queimarem, mas o fogo não lhe representava dor. A palavra era libertação.
Seus manuscritos atravessaram o canal da mancha, chegando até os paises baixos, levados pelo próprio padre Henrique, em viagem de intercâmbio.
Alguns dizem que as idéias do padre Alberto, passaram pelas mãos de Lutero, inspirando-o em sua reforma contra a igreja, decretando o fim da Santa Inquisição e das fogueiras, pelos menos até hoje.
Se é verdade ou não, não tenho certeza, mas e você? Responderia ao chamado?