Um sonho (ou não)

Era uma noite qualquer, em que eu mais uma vez voltava para casa, frustrado do cotidiano para paz do meu quarto, dos meus livros e da minha cama. Passei pelo mesmo corredor de todos os dias, com aquelas portas fechadas onde raramente se via algum vizinho, aquelas paredes com estranhas cores de péssimo gosto, recendendo a mesmice cotidiana e cinza, algo que só se pode vivenciar nos apartamentos do centro paulistano. Ao entrar a pia me fez relembrar que ela continuava com aquele mesmo gotejar inexorável que há algum tempo me acompanhava, o neon azul do hotel a frente continuava a adentrar a sala iluminando vez por outra aquela vetusta lembrança do porta-retrato, que me trazia no entalo da garganta uma leve nostalgia de um tempo que não fora tão bom assim. Mas como a todos os seres humanos pensantes de meia idade, imaginei que o passado tinha sido ótimo, quando na verdade não era digno nem de saudade.

Liguei a TV por puro mecanicismo do ato, mas como sempre nada me enchia os olhos, ainda mais naquele dia que chegava mais cedo em casa por não ter aula à noite. Sempre a mesma coisa, a novela daquela puta emissora, cheia de atores horríveis, que se quer conseguiam fazer um sotaque nordestino digno, o jornalismo carniceiro com seus apresentadores engravatados, que defendiam o pobre povo brasileiro envergando um belo Armani ou Hugo Boss, propaganda, propaganda, a igreja do Senhor resolvendo os problemas dos fiéis que comprassem o “óleo ungido” (se o publico alvo fossem meus alunos de cursinho seria “o santo gabarito da fuvest”), propaganda, mais jornalismo carniceiro e o engravatado corpulento dizendo “ô senhor governador, foca bem aqui na minha cara ô Pompeu, o senhor seu governador, deveria ter vergonha de uma coisa dessas, põe na tela ô Amilton, olha o rosto dessa criança faminta...” enfim desliguei depois de um longo bocejo entediado, parecido com aquele dos cachorros.

Rumei para o quarto já sentindo antecipadamente o esgotamento do dia seguinte. Pela enésima vez eu iria ter de dar aquela aula sobre “Memórias Póstumas de Brás Cubas” no cursinho, puta que pariu, colocar maquiagem improvisada ali na hora, o velho blazer marrom, tudo pra fazer a molecada dar risada nas “aulas show”, não ensinava porra nenhuma, mas o cursinho fazia fama com aquilo. No final das contas todo mundo pagava quase 200 reais para um stand up por dia durante um mês, vai entender. No começo era até legal, mas depois de oito anos amigão, você já tá com o saco nas costas, inclusive me disseram que eu estava mesmo andando com as pernas mais afastadas do que normal, mas isso era por outro motivo. Não sei mesmo porque eu ainda caio nas graças de algumas alunas, eu no auge dos meus 39 anos, fico ainda dando trela pra essas menininhas, sabe? Alternativinha, reacionária, gosta de Ginsberg e acha que tudo é uma merda, adora um intelectual com cara de porra louca e se tiver moto o pau entra até mais fácil.

A infeliz tinha 18 anos e achava que sexo se resumia a força, a todo o momento ficava falando “machuca, professor, machuca” e quem se fodeu fui eu. No final das contas o namorado veio buscar ela na frente do prédio da “professora de biologia” e eu fiquei ali na cama deitado olhando para o teto com um cigarro na mão e uma dor enorme nas bolas. Depois disso a gente ainda se viu na Augusta, nem eu sei o que eu fui fazer lá, mas enfim. Ela estava acompanhada do namorado e havia me visto do outro lado da rua.

- Oi professor, esse aqui é o Raul meu namorado – se eu não tivesse a conhecido tão afundo diria que era uma santa imaculada – eu estive há uns dias atrás no ap da professora de biologia pra uma aula particular e ajudou muito, será que o senhor não podia me dar uma também? – o namorado ouviu alguém chamar, deu um beijo nela e foi falar com o amigo à dois passos de onde estávamos – o que o senhor acha – ela deu um sorriso safado mordendo o lábio inferior me medindo de cima abaixo.

- Sinto muito, mas eu não dou mais aulas particulares.

O namorado voltou e logo em seguida se foram, seria bom se pudéssemos resolver a vida com igual simplicidade.

Naquela noite tudo aquilo eram pensamentos cotidianos, tanto quanto as paredes do corredor de portas fechadas. Mais um bocejo e logo me deitei na cama. Queria terminar de ler “Pedra Bonita”, ultimamente me interessava muito por aquelas paisagens interioranas do nordeste pintadas tão bem, imaginava o sotaque de cada um dos personagens, não aquela merda da novela, mas um sotaque de verdade. Era uma boa maneira de encerrar a noite.

Foi aí que tudo começou. Não demorou muito comecei a sentir as pálpebras pesadas e logo adormeci, se quer terminei a página que lia, mas não demorou muito voltei a abrir os olhos. Você, meu caro leitor, não imagina a minha surpresa ao tentar me levantar e não conseguir mover um músculo, meus olhos continuavam abertos, eu sabia que estava acordado, estava deitado de lado olhando as paredes, mas não conseguia mover absolutamente nada. De repente percebi um barulho de motor desesperado a acelerar, digo percebi por que parecia que estivera o tempo todo ali. Meu corpo balançava e pulava na cama acompanhando os solavancos dos buracos na estrada. O pânico perdurava e crescia, enchi os pulmões para gritar, mas sequer minha boca se abria, apenas respirava. Ouvi um lamento desesperado de mulher que implorava por algo que eu não entendia. O carro seguia veloz pelas ruas, eu continuava ouvindo as suplicas da mulher “por moço nã...” e logo em seguida “ vai carai cala a boca se não te meto tiro aqui memo tio”, ouvi um engasgo ou algo assim, parecia que estupravam a moça, fiquei desesperado, mas pra onde quer que eu olhasse tudo que via eram as paredes do quarto, luz acesa, o ambiente parecia calmo, mas meu corpo balançava com solavancos, meus ouvidos captavam um motor furioso, como se o motorista estivesse atrasado para um compromisso.

Logo parou, meu coração acelerou ainda mais. Não conseguia entender o que estava acontecendo, como era possível aquilo? Eu estava dentro do meu quarto, sentia o colchão abaixo de mim, olhava para a parede, mas ao mesmo tempo não estava ali. Duas mãos me pegaram pelos ombros, ouvi um “vai carai, vai, vai!” e simultaneamente um estouro seco e ensurdecedor, tão abrupto que pulei convulso de susto na cama. Foi aí que percebi que já podia mexer o indicador, não ouvia mais a mulher e começava a recuperar os movimentos.

Sentei na cama e quase chorei, e nem sabia por que. Tentei dormir, mas não consegui, o sono só veio mesmo a pulso, depois de quatro doses do meu velho amigo Jack. Meus pensamentos estavam confusos, ao mesmo tempo em que não via relevância alguma no que aconteceu, não queria pensar sobre aquilo, mas uma parte ficou curiosa por saber o que era. Não sonhei mais e a noite passou sem quaisquer novidades.

O dia seguinte amanhecera como todos os outros. O sol adentrando a janela dos cômodos, enquanto a vida urgia lá embaixo. E se há um deus, que ele salve dona Melinda minha faxineira que passa lá todas as quartas, deixou um café fenomenalmente forte sobre a pia da cozinha (onde a torneira continuava pingando), por certo deve ter visto o copo vazio do lado da cama e a garrafa destampada em cima da mesa de centro na sala. O resto da manhã transcorreu como de costume, eu sequer me lembrava da noite anterior, tudo era igual, eu, minha moto, o trânsito, os palavrões entre um corredor de carros e outro, enfim tudo. Fui Brás Cubas por um dia todo, e nada mais se deu.

Três ou quatro semanas se passaram e eu notei uma ausência na sala de uma das unidades do cursinho, talvez por que meus hormônios começavam dar sinais em virtude da abstinência, mas aquela menina que já citei acima não aparecia. Estava então eu no intervalo das aulas observando o movimento dos carros e raciocinando; enquanto eles poluíam o ar, eu poluía meus pulmões e degustava um café, foi quando reconheci uma das amigas dela conversando com um rapaz e fui me informar.

- O senhor não tá sabendo professor? – aquele “senhor” me doía nos ouvidos – Ela foi encontrada morta na marginal, ela e o namorado. Dizem que foi seqüestro relâmpago, os filha da puta ainda estupraram ela depois de limpar a conta do namorado e sumir com o carro.

- Sério? – eu estava estarrecido, mas não queria demonstrar uma surpresa maior do que a que um professor deveria demonstrar.

- Foi – continuava ela com a maior naturalidade –, me disseram, tiro na cabeça, saiu até naquele jornal que só passa desgraça – me retirei aturdido.

Desde então tenho dificuldades para dormir e ando escrevendo centenas de releituras dessa história que ninguém vai ler. São 3:37 da manhã, já consigo sentir alguma dor nas costas o que significa que não vou precisar de calmante hoje, apenas uma doze do meu velho amigo já será o bastante, por tanto boa noite Raul.