Olhos famintos
Enquanto Ana aguardava o ônibus numa estação rodoviária de uma importante cidade, algo insólito lhe aconteceu. Já tardava para seu ônibus chegar, mas como isso não causava nenhuma estranheza em ninguém ela chegou acreditar que era assim mesmo. “Coisa de cidade grande”. Se fosse lá em sua pequena cidade no interior de Goiás, certamente já ouviria o esbravejar de alguém, reclamando, querendo saber por que o ônibus não chegara, mas ali naquele centro do comércio, da cultura, centro do país parecia que ninguém tinha voz. Eram todos mudos, silenciosos demais, solitários demais em meio a tantas vozes e pernas apressadas.
“Ora, aguardemos mais um pouco” – ela pensou enquanto abria um pacote de biscoito. Se era fome ou não pouco importava, importante seria, naquele instante, disfarçar sua ansiedade. Disfarçar para quem? Não se sabe, Ana queria se embebedar em algo que lhe roubasse atenção, ânimo a fim de não ver o tempo passar.
Quando ia se apropriar do biscoito desses de polvilho, ouviu uma voz pueril falar-lhe calmamente. Olhou. Eram dois olhos famintos pedindo-lhe um biscoito. Ana não hesitou, deu-lhe o biscoito, mas o gesto não se comparava apenas a uma bondosa dona do interior. Na verdade, sentira receio, medo, intolerância, algo estranho.
Notou que a criança, ao tomar posse do biscoito, virou-se ligeiramente. Parecia ter algo muito importante a ser feito e já estava atrasada. Saiu.
Alguns minutos depois, quando Ana já havia se recomposto da curiosa cena, continuou a comer os biscoitos. E o ônibus a desafiava. Queria testar-lhe a paciência. Entre um biscoito e outro, ouviu de novo a voz dos olhos famintos. Ana não negou-lhe o biscoito.
Encabulou-se mais uma vez, por que aquela criança, de tão tenra idade, saía tão comprometida com a pressa? Por que aquela mente parecia fazer tanto barulho nos minutos seguintes de Ana?
Outra vez e outra.
Ana não se conteve e se preparou para o “ataque”. Assim que entregou o biscoito pela quinta vez, já impulsionou o corpo para levantar e acompanhar aquele ser e conhecer seu destino tão próximo e tão misterioso.
A menina de aproximadamente nove anos se dirigiu rapidamente ao seu objetivo final sem notar a implacável perseguição a que Ana se propusera. Aquele ser de olhos famintos tinha passos miúdos, porém muitos rápidos. Aonde iria?
Finalmente Ana colorira o mais belo quadro de sua existência: ela viu o mais lindo gesto de amor e fraternidade. Aquela pequena, que ganhara um biscoito por vez, o levava e juntamente com seus outros dois irmãos menores saboreava o manjar do meio dia. Ana podia ver o estalar dos biscoitos sendo divididos em três partes iguais. Rostos idênticos, Fome idêntica, sorte idêntica. Meu Deus! Aquela consciência de partilha era reluzente aos olhos. Era sinônimo de vida em plena guerra!
O aguardado ônibus interestadual já se posicionava de forma imponente, Ana pôde notá-lo. Fora dada a última chamada rumo ao interior de Goiás.