A Cura da Apatia

Acorda, como infelizmente há de convir a continuação do esquete chamado Vida antes do ato final. Claro. A cena é a mesma desde que oficialmente fugiu do descompromisso da vagabundagem remunerada que antecede a maioridade penal e também permanecerá sendo a mesma (cena) enquanto seu corpo trabalhar na inalação, na taquicardia, nas excreções e etc (Deus sabe o quanto ele deseja que isso termine o mais breve possível); café da manhã insosso empurrado e os dribles mentais para evitar pensar nas próximas quinze horas (sabe-se que o aprofundamento no desinteressante porvir é deveras desalentador; um verdadeiro arroubo à má vontade e preguiça). Espera durante algum tempo a característica movimentação intestinal que, comumente quando concluída, alivia até o espírito – mas nada acontece, o que de imediato preconiza um péssimo arrastar de horas, dada a fidelidade entre latrina-e-cu.

Ele é velho, apesar da pouca idade. Não faz o tipo convidativo a diálogos com estranhos. Sente uma indiferença felina e ferina diante da maioria dos seres humanos. Não se importa. Não sente orgulho disto, mas também não dá a mínima e não faz o mínimo esforço pra subverter tal misantropia.

Ele está em pé segurando com a mão direita na haste metálica e fria de um trem com ar-condicionado. Colocou o capuz da touca da blusa na cabeça, os fones devidamente gritando em seus ouvidos e, na mão esquerda, um livro aberto. Um livro pequeno, presente de uma amiga. Sente as contrações que deveria ter sentido no máximo durante o banho e uma pontada de mau humor cintila em algum lugar recôndito de seu organismo.

Pensa na falta de interesse na família.

“Esse metrô sempre cheio, é ou não é?”

Pensa na falta de interesse da família.

“Por que ele pára toda hora? É ou não é?”

Pensa na falta de interesse na maioria das coisas mundanas.

“Tem um jumento pilotando isso aqui! É ou não é?”

Não consegue se concentrar no livro. Seus pensamentos abundam. Além do idiota caipira soprando um bafo podre em sua cara perguntando se “é ou não é?”.

- “É ou não é?” o quê, caralho? Logo cedo enchendo o saco...

Ele vê nos olhos do outro uma mágoa aflorar. Vê têmporas enrubescendo. Vê um sorriso murchando. Ele não se importa. Não sente um pingo de remorso. Se pudesse, espatifaria todos os dentes do outro.

O trem pára na estação onde o inferno toma forma. Dezenas de pessoas se amontoam diante da porta, prontas para disparar como uma manada de bois. Um indivíduo fica na frente. Fica no meio do caminho. Fica bem no meio do caminho. Fica bem na frente dele – que não se importa e arrasta o indivíduo pro lado de fora sem dó nem piedade. Tem lá sua força e, ainda com o arrimo de outras dezenas de apressados, não tem trabalho algum na troca involuntária de ambiente do outro – do parasita.

O outro – o parasita – acha ruim e esbraveja. Ele interrompe a caminhada. Pensa em voltar e desferir uma cotovelada no nariz. Ah, as aulas de muay thai! Mas é um pensamento rápido e passageiro. Dá de ombros e segue seu caminho.

Ele está mais apático do que o normal. Nada o perturba. Uma espécie de ataraxia – exceto em situações passíveis de irascibilidade gratuita, como no metrô. Ele tenta se perturbar procurando o porquê de não se sentir perturbado com nada.

“Meu marido não sei o quê...”

Será que é falta de amor?

“Mas meu filho pipipipipipi”

Será que é falta de ambição?

“A conta do celular bibibibi”

É a Morte se aproximando?

“Ai, que tédio, blablablabla”

Tédio... Ele não suporta a menção da palavra. Ele quer morrer o dobro de vezes que normalmente deseja quando lê a palavra TÉDIO; quando ouve a palavra TÉDIO. A palavra TÉDIO deveria ser banida do vocabulário, assim como as pessoas que se deixam consumir pelo que ela significa.

Pessoas entediadas são chatas.

Pessoas entediadas não têm o que pensar.

Pessoas entediadas são de perecível e dispensável companhia.

Pessoas entediadas não sabem mensurar o quão desinteressantes são e continuam a falar, falar, falar, falar, falar e falar, sem sequer perceberem que não estão sendo ouvidas – apenas escutadas e parcamente suportadas.

Pessoas entediadas não compreendem o que um meneio de cabeça com um “aham” seguido pelo desvio do olhar do interlocutor significa que é hora de se fechar no casulo da mediocridade e só sair de lá quando ocorrer alguma metamorfose que lacre suas bocas.

Pessoas entediadas são inconvenientes.

Tão mergulhado em seus pensamentos – ou na falta deles -, levanta sem pedir licença ou anunciar seu destino. Vai até a garrafa térmica e enche um copo plástico de café. Pelando.

Bebe café.

Bebe.

Bebe como um Balzac sem barriga protuberante.

Bebe como um Balzac sem acuidade sensorial pra entender o universo feminino.

Continua bebendo café, como se a ingestão do liquido precioso não fosse lhe causar coceiras insuportáveis no rabo por causa das hemorróidas.

O relógio, para sua surpresa, voa.

Anoitece.

Faz frio, finalmente, na cidade.

As mulheres mais bem vestidas. Os homens mais bem vestidos. Todos mais bonitos. Perfumes perdurando mais.

Ele bate o cartão.

Ele desce o elevador.

Ele sai no vento frio.

Ele entra no primeiro ônibus.

No segundo.

No terceiro.

Desce um ponto depois do seu.

Apalpa o bolso esquerdo da calça. Continua lá, o volume. Seu salário.

Um mês de noites mal dormidas e manhãs de depressão e tardes devastadas por pensamentos bonitos em cenários lúgubres – um Renoir forrando gaiola – dentro do seu bolso, materializado e resumido em notas.

O valor certo.

Desceu um ponto depois do habitual. Desceu uma pirambeira de asfalto, entrou numa ruela de terra; Margem de um córrego fétido; entrou numa viela paralela e mencionou um nome conhecido para dois desconhecidos. Fez a troca.

Chegou em casa.

Largou a mochila no sofá.

“Será que é isso mesmo?”

Encheu um copo americano de café.

“Será que há alguma chance?”

Tirou os tênis. Eram de um número menor e pertenciam a um amigo. Uma ferida se abriu no peito do pé. A meia colada na ferida aberta; uma secreção seca detalhando os fios entremeados da malha. Arrancou de uma vez e o sangue começou a brotar.

“Há alguma outra saída?”

Sopesou o que pôde.

“Deveria estar desesperado?”

Foi até o espelho do banheiro. Olhou-se. Um olhar demorado, longo, analítico como nunca antes fora.

“Um último olhar?”

Levou a mão direita à têmpora. Pressionou o cano na bochecha direita.

Sempre se olhando no olho.

Sempre olhando a coisinha metálica que custou seu salário.

Salário que batalhou por um mês. O valor equivalente a um calibre 38 de numeração raspada comprado com um morto de fome qualquer. Com um vagabundo qualquer. Uma bala, uma vida. Uma bala, um salário. Um salário, um mês. Um mês, uma bala, um tiro, uma vida.

Colocou o cano na boca e puxou o gatilho.

26/04/2011 - 19h01m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 26/04/2011
Reeditado em 26/04/2011
Código do texto: T2932551
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