Um Conto Sobre o Velho Oeste.

O vento uivava como coiote, com a diferença de que o animal fica lá longe, indiferente à nossa presença. O Vento não. Batia nas nossas canelas. Feria com suas gotículas arenosas. Além de anunciar-se com essa freqüência material que açoitava, ainda fazia emergir do solo aqueles solavancos empoeirados que sobem impertinentes rumando para as nuvens, avermelhando o lugar, como se algo de inusitado estivesse para acontecer. As pessoas se agitavam, andavam mais depressa na tentativa de chegar a um abrigo antes que seus olhos fossem inundados com as imundices que se distribuíam no ar.

Naquele momento misturam-se as sensações, entre a secura e a areia estridente, com as nuvens pretas que se espreitam no horizonte, como se quisessem anunciar de que o mundo ia transformar-se a partir daquela imagem, em algo devastador, através de uma tempestade anunciada capaz de molhar a todos que não tivessem num bom abrigo ou num lugar para esconder-se das suas águas. Havia um misto de medo, de agonia, no rosto de quem transitava pela rua de chão batido, já que naquele lugar nem se imagina o progresso do século XXI, visto que naquele instante, vivia-se o sofrimento da parca evolução, notadamente, pela ausência de recursos que pudessem ao menos ladrilhar aquela serventia pública.

O fato é que não eram apenas as circunstâncias do lugar, nem o trovejar e os relampejos do tempo, que se uniam para causar pavor. O temor se avizinhava dos corações infantes, bem como, de todos aqueles que não tinham como se defender, já que um andarilho havia passado pelo lugarejo trazendo a notícia de que um bando de homens mal encarados se afugentava nas montanhas bem próximas, como se estivessem preparando uma iminente invasão. Alguns arriscavam seus palpites, dos mais criativos aos pessimistas, profetizando a presença de delinqüentes famosos que alguns anos atrás havia feito uma chacina num rincão distante.

Em todo caso, ninguém sabia ao certo o que era mais urgente, ou esconder-se de um temporal inconseqüente, ou então ficar à mercê dos esconderijos e das estratégicas satânicas dos bandidos, já que nesses instantes de insegurança é que os maldosos se associam para facilitar seus avanços criminosos. A chuva não facilitava e nem dava trégua, favorecendo o ataque sorrateiro. Foi nesse clima de intranqüilidade e de insegurança, que se ouviu o tropel de cavalos, que se misturava com os riscos luminosos do horizonte, além de gritos desvairados e incompreensíveis que saiam daquelas bocas malditas que vibravam com o pavor das almas indefesas. Não era, ainda, o momento de dor por parte das vítimas, mas, apenas o porvir de um cenário de carnificina, anunciado pela desarmonia das palavras mal pronunciadas que anunciavam terror.

Foi nesse clima de arruaça e de folia desenfreada que se ouviram as primeiras saraivadas de tiros. Os bandidos tinham sangue no semblante, ódio nos corações, sede no gatilho, mas, num fio de esperança aquele que parecia ser o comandante da operação macabra, dizia em alto e bom som: - Não matem crianças nem velhos! Apenas recolham as mulheres numa redoma qualquer. Matem todos os outros que encontrarem pela frente. Assim, a matança foi descomunal. As ruas ficaram cheias de sangue, com poças que se misturavam com as enxurradas que corriam abundantes pelas valas e levavam a cor avermelhada com se fosse pintura das almas que se despendiam, para encontrarem o céu azulado pelo caminho, numa encruzilhada inquestionável entre a cor branca da paz e a cor cinzenta da incerteza.

Mas, como em todo evento venturoso, há sempre aqueles que sobrevivem. São pessoas certas, escolhidas para ficar e sobreviverem. São os desígnios do Criador. Sim, são aqueles escolhidos por Deus, já que sempre há uma mínima esperança, um lugarzinho escondido de todos, que possa abrigar alguém que passe incólume à grande tragédia. Entre os idosos, as mulheres e as crianças, salvas pelo interesses dos bandidos, estava eu, furando suas estatísticas. Num porão quase obscuro, desconhecido da maioria das pessoas, pude embrenhar-me por teias de aranha, mas, acabei achando um lugar Divino, oculto, silencioso, manso, de onde só se ouvia os estampidos que prosseguiram por quase meia hora. Tudo cessou finalmente, mas, pela minha presunção, eram poucos os que estavam vivos, pois, não se ouvia nenhum choro, nenhum lamento; apenas um silêncio mortífero e assustador. Certamente que as pessoas escolhidas para viver estavam apavoradas e, talvez, caladas, ante ao prenúncio do sofrimento que lhes alcançaria num terço de horas, após a carnificina.

Os bandidos, já não estavam tão dinâmicos no que concerne ao seu empenho inicial. Um ou outro gritava palavra de ordem, como: - tudo já foi feito, agora vamos abrir uma boa garrafa de wísque lá na taberna. - Vamos festejar a noite toda! – Essa cidade é nossa, gritava aquele mais afoito. Eu, no meu esconderijo, com vergonha da minha conduta, pois, fui o único que não me expus na hora do tiroteio. Só conseguia pensar em como poderia ser o agir dali pra frente. Pensava comigo: - Não morri antes, mas, certamente, vou morrer depois, já que não posso ficar aqui eternamente. Ao mesmo tempo uma força interior me alertava: Tinha sobrevivido por algum motivo transcendental, visto que não fosse por isso, estaria num plano superior; como aquelas vítimas daquele anunciado assassinato.

Fiquei alerta quase a noite toda, só ouvindo o barulho de garrafas se quebrando e de música estridente que não condizia com o silêncio do lado de fora da taberna. Dei um cochilo, em face do cansaço, mas, lá pela madrugada já não se ouvia mais nenhum barulho dos meliantes. Foi o momento que aproveitei para sondar e estudar a possibilidade de fuga. Mas, antes de qualquer atitude de minha parte, tinha de descobrir onde estavam os sobreviventes, pois, tinha certeza absoluta que havia muitos, já que tinha ouvido o comandante determinar que determinadas pessoas fossem poupadas.

Pensei comigo! Está aí a razão de estar intacto nessa tragédia. Deus me poupou para que eu fosse o “anjo da guarda” dessas pobres criaturas que sobreviveram. Esse sinal deu-me força para a luta que viria a desenvolver. Afinal, já deveria estar morto, caso fosse essa a vontade do Senhor meu Deus. Sentia uma força interior descomunal. Via em mim um ser de outro mundo, capaz de vencer todos aqueles bandidos. Era uma energia que vinha do meu coração, como algo sobrenatural que nunca havia sentido antes. Consegui perceber que caso eu morresse lutando naquela frente de salvamento, não haveria importância alguma, eis que já havia sido agraciado com o fervor da vida e não tinha mais medo de enfrentar a morte.

Foi nesse impulso heróico que comecei a andar entre os corpos estirados ao chão, mas, minha ação estava facilitada pelo relaxamento natural dos bandidos que nesse momento tinham absoluta certeza que não existia um só sobrevivente para testemunhar a brutalidade daqueles instantes. Foi nesse momento que ouvi um determinado choro (contido) de uma criança, mas, precisava estar mais atento, porque não conseguia definir de onde vinha aquele chorinho, até porque a chuva ainda não tinha cessado e as gotículas atrapalhavam minha audição. Andei mais alguns passos, com toda a cautela que o momento exigia. De uma esquina, através de um casarão onde deveria funcionar um armazém, pude ver que havia agitação de pessoas numa casa próxima, onde dois bandidos vigiavam sem o mínimo de cautela, eis que cada um deles estava ao lado de uma garrafa, com as armas escoradas numa grade. Ali encontrei meu primeiro obstáculo, visto que não sabia como lidar com a situação. Eu era um autônomo dedicado ao ramo de alpargatas. Trabalhava com minha astúcia de venda. Pensei como vender um par de calçado àqueles bandidos. Evidente que não seria uma venda comum. Não era uma boa estratégia...

Teria de armar um estratagema que pudesse me fazer semelhante. Nisso vi um corpo de bandido ao chão. Deve ter sido atingido por alguma pessoa que tentou se defender no momento da chacina. Vesti seu traje, que, por coincidência, ou em razão de mais uma obra do destino, casou como luva. Antes de me fazer presente, fiquei sondado a conversa. Um deles disse: - Quanto seráá quii vamooss recebêê do chefii? Os palpites foram muitos. Entretanto, estava aí uma chance de me aproximar e arrumar conversa. Peguei uma garrafa de wísque, fiz-me entender como alguém embriagado e aproximei-me com a seguinte indagação: - Eiii, cuumpaaanhheiros!!! Ucéis sabi quantu nóis vai ganháááá??? – Num sabemus nãããooo!!! – Puiisss, ééé... Uuviii o chééfiii faallááá qui nós vaaiii gaanhááá 200 rééiiis!!! E...teemm maaiis. – O chééfii falôô quii jáá achôô o cofriii. Quii éé práá todoo mundooo iii láá pra recebêê!!! Esse curto diálogo foi suficiente para retirar os dois intrusos do local.

Aí começava a jornada mais astuciosa da minha vida. As mulheres estavam visivelmente abaladas pelas maldades de alguns mentores do alto escalão do grupo, já que o estupro foi o menor das sevícias. Estavam esfarrapadas e com os sinais da violência pelo corpo. As crianças, com os olhos marejados de lágrimas, mas, com o choro contido, apenas balbuciavam soluços indeléveis e solitários. Os anciões abaixavam as cabeças, como se quisessem externar sua vergonha por não terem forças para reagir e ajudar seu povo. Diante desse quadro desalentador, foi necessário firmeza na minha postura. Tive de balbuciar gritos contidos, para não despertar minha presença entre as vítimas. Foi a eloqüência dessa manifestação que fez ressuscitar naquelas almas penosas um pontinho de esperança e de fé. As mulheres, observando que poderiam salvar seus filhos, deixaram em segundo plano o sofrimento físico, e começaram a acomodar seus rebentos nos braços para a partida derradeira daquele lugar horrendo e sofrido.

Por sorte, ou por desígnio da Divindade (em razão de ser eu o escolhido para essa missão), tinha conhecimento preliminar de telégrafo, já que no passado havia feito um curso com tal finalidade, mas, por razões que não me lembro, acabei abandonando tal profissão. Essa pontinha de esperança tornou-se a ‘tábua da salvação’ que passei a pregar para o grupo. Tínhamos de andar cerca de um quilômetro até a linha férrea, eis que, em travessia bem recente por aquele local, constatei que ali havia uma estação com aparelho que servia a essa finalidade – o telégrafo (a única comunicação a distância do velho Oeste). A iminência da caminhada e o esforço do trajeto não era empecilho para aqueles náufragos do destino. Como diz o velho adágio popular: “A esperança é a última que morre”.

Enquanto eu andava, pensava em como seria depois da comunicação com o próximo povoado. Não tinha a mínima idéia do que poderia acontecer, ou se, por acaso, haveria algum lugar aonde os bandidos não iriam nos procurar após a fuga. Vinha comentando o desalento dessa falta de opção, quando um menino de 13 anos se aproximou de mim para informar que ele sabia de um lugar seguro, eis que costumava ir com o seu pai a uma caverna existente há alguns metros, onde eles caçavam morcegos, já que essa praga costumava infestar o rebanho do seu progenitor. Mais uma providência Divina dando sinal de que as pessoas em desespero também são capazes de refazer suas esperanças, mesmo em circunstâncias tão inóspitas. Mais essa questão estava resolvida, até porque o lugar, embora inimaginável por quem não conhecesse, tinha acesso razoavelmente transitável, em que pese o grupo ser constituído na maioria de crianças. Esse sacrifício era o menor diante de todas as agruras que aquelas pessoas tinham acabado de sofrer.

Fiz a comunicação através do telégrafo com um povoado não muito distante e recebi a confirmação de que uma força tarefa organizada pelo Governo já estava atrás de tais bandidos e que iriam envidar todos os esforços no socorro das vítimas e também no combate daqueles bandidos.

Fica a sensação, através deste conto de que para toda tragédia existe uma solução. Deus sempre intercede através do homem encarnado em socorro daqueles que sofrem. Os acidentes coletivos e as mortes de muitas pessoas são muitas vezes inexplicáveis pela ciência humana, mas, perfeitamente explicáveis ante aos desígnios morais reservados à criatura humana. Acreditar em Deus e pedir sua proteção mesmo que seja algo tão distante e por vezes pareça inatingível, é uma condição humana que nunca deve ser esquecida em momentos de dor.

Machadinho
Enviado por Machadinho em 26/04/2011
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