mais um dia...
Era apenas mais um dia naquela cidade úmida. Mais um dia de chuva, mais um dia em que a esperança parecia ter desaparecido daqueles habitantes. Todos eles sentiam seus corações pesados e ao mesmo tempo vazios. Alguns não haviam se dado conta de sua condição e apenas viviam rotineiramente realizando suas funções automaticamente, quase adormecidos ou porque não dizer totalmente adormecidos? Era como se viver ou morrer pouco importasse, pois o que importava no momento era o que poderiam comprar com seu dinheiro. Qual carro ou qual roupa da moda poderiam usar naquele ano. E se sairiam em algum noticiário um dia. E se...ficariam milhonários...um dia. Como se a vida deles se resumisse apenas em o que poderiam TER...mesmo que o objeto de desejo fosse a esposa do vizinho ou quem sabe até...do irmão. Nada mais importava. Seus corações careciam de iluminação. Estavam sombrios. E estranhamente...e porque não dizer...SEM VIDA. As batidas eram um mero reflexo de algo que já havia vivido no passado, num longíquo passado em que a solidariedade, a honestidade e principalmente o amor...ainda existiam naquela cidade. Um estranho, morador de uma cidade vizinha, ao chegar ali logo percebeu o quanto pesado estava o ar e como o céu sobre aquele lugar era opaco denunciando que ali não existia mais vida...apenas um reflexo do que um dia havia sido uma cidade próspera e feliz. Intrigado, este estranho começou a procurar respostas, começou a investigar os motivos daqueles seres humanos encontrarem-se tão distantes de tudo que dizia respeito ao SER...e a beleza da vida. Logo descobriu que, no passado, estes habitantes tinham sido visitados por três elegantes senhores: o primeiro, chamava-se: ORGULHO, o segundo atendia por COBIÇA e o último e não menos importante, chamava-se INVEJA...este três cavaleiros ensinaram a todos naquela cidade que o importante era seguir a doutrina do TER...que com ela, eles chegariam ao SUCESSO...conquistariam todas as coisas e seriam DONOS DO UNIVERSO. Eram grandes oradores, intelectuais que não deixavam dúvidas sobre o que proferiam e que rapidamente conquistaram a confiança daquele povo. Um povo que diferentemente dos outros das cidades vizinhas, cultivava muito as suas conquistas do passado, e relutava em perceber que aquela cidade outrora fora uma cidade rica e com oportunidades para todos, mas que no presente estava na miséria, explorada por comerciantes, políticos, religiosos de má fé e usurpadores da saúde pública. Esta cegueira a sua situação atual foi o que mais serviu de fortalecimento para as idéias e conceitos dos três elegantes senhores que viam ali, naquela triste cidade, os seus melhores alunos e seguidores.
O estranho consternado, lamentou o fato e seguiu sua caminhada em busca de uma cidade que ainda não tivesse sucumbido à doutrina do TER, pois segundo ele, aquele era um caminho sem volta, e por mais que se esforçasse para fazer verem que estavam adormecidos...àquelas pessoas não lhe dariam atenção, seguiriam suas vidas rotineiramente, vivendo um dia após o outro e sonhando com o que poderiam TER...era assim que seus avós haviam vivido...e seus pais...e agora eles... e as próximas gerações. O veneno já se perpetuara de geração em geração. E ele era apenas um estranho, não era um herói ou um salvador...era apenas alguém seguindo seu caminho e que já havia assistido aquela cena antes, em outras cidades onde os três senhores também tinham passado. E o resultado era o mesmo, sempre o mesmo: corações pesados e vazios. Sombras do passado. Céu opaco...e umidade...uma grande umidade, devido a ausência permanente do Sol. Aquela umidade nada mais era do que as lágrimas da Natureza...cruelmente assassinada pela COBIÇA...incentivada pela INVEJA...e exaltada pelo ORGULHO que reinavam totalmente de dentro do lugar que era mais sagrado e precioso, e por isso mesmo inacessível...o coração daquelas pessoas.
O estranho havia chegado tarde demais, mais uma vez. E este fato sempre o deixava inconformado. Se ele não poderia fazer nada porque estava ali? Porque encontrara aquela cidade no meio de seu caminho? Porque encontrara aquelas pessoas?
Passaram-se séculos e o estranho cansou-se de caminhar e passar por cidades úmidas com seus moradores sombrios e vazios e decidiu estabelecer moradia na última cidade que visitara, que possuíra as mesmas características das outras onde os três senhores haviam passado e triunfado. No início aquela obscuridade o atemorizava, o repugnava e fazia-o temer por seu coração, que ainda possuía uma chama viva. Porém, os meses foram passando, os anos também. E em mais um dia naquela cidade algo inusitado aconteceu. O estranho sem querer, olhara dentro dos olhos de uma jovem enquanto falava e, naquele instante...naquele breve instante, o coração daquela moça despertara e em seguida tornara-se mais leve e foi enchendo-se de uma sensação muito boa, uma sensação que seria impossível para ela descrever. Talvez a única resposta para aquela imediata inquietação fosse: a chama do amor. O estranho, sem querer, olhara aquela moça com outra visão. Não mais com a visão de sempre. De que aquela era mais uma moradora perdida, sem chance, sem vida. Deixara o seu olhar ser guiado pelo seu coração e foi assim que o mesmo alcançou aquele coração...um dia sombrio e vazio...e foi assim que desde então...aquela cidade...nunca mais foi a mesma. Nunca mais existiram dias iguais, dias cinzentos e sem esperança. E nunca mais os seus moradores quiseram saber da doutrina do TER...para eles, agora, o que era importante era: SER...SER HUMANO. SER COMPLETO. SER VERDADEIRO...e por consequencia...SER FELIZ.