O ATAÚDE E O ALAÚDE

Eu estava morando em Porto Alegre e tinha um amigo, músico como eu, só que ele é baterista e eu pianista, que residia em Três Coroas, distante da capital uns 90 km, e estávamos ensaiando há dois anos, tipo uns onze ou doze ensaios, que realizamos nos anos de 2002 e 2003 pra gravação de nosso CD num estúdio de Taquara, ali perto também, o que foi feito em janeiro de 2004. Como era mais fácil eu carregar meu sintetizador no ônibus, viajava eu então pro estúdio dele, que ficava na casa dos pais dele, e ali ensaiávamos um pouco na sexta-feira à noite, no sábado pela tarde e domingo também, quando eu voltava pra Porto Alegre, até porque se ele fosse pra capital, teria de levar toda a bateria completa, já que iríamos gravar com ela, e isso era impensável, por ser muito grande em número de peças, e ter de montá-la peça a peça no estúdio era um estresse que desanimava o mais bem intencionado dos músicos, por mais apaixonado que fosse. Obviamente era mais prático eu ir pra casa dele e levar meu sintetizador, uma peça única, até porque lá tínhamos todo o tempo do mundo pra trabalharmos os arranjos das músicas em detalhes de fazer inveja aos mais minuciosos e competentes profissionais da área, porque encarávamos aquilo como algo seriíssimo, tanto que, o acabamento final de nosso esforço, embora ainda não tenha entrado na mídia para divulgação por razões que aqui não vêm ao caso, ficou uma sonzeira de dar inveja aos gringos da Europa e EUA, ainda mais depois que se agregaram os trabalhos de guitarra de um gurizão chamado Gabriel Von Brixen, que se incorporou ao grupo por acaso, nem tendo ainda 18 anos de idade, e que gravou os temas a partir de tudo o que ouvira em playback, porque não esteve no estúdio conosco, pois não havia aparecido em nossas vidas ainda. Mas isso são outros quinhentos, que não tem nada a ver com o objetivo desse escrito.

Lembro-me que numa dessas viagens que fiz para realizarmos mais um ensaio, ao chegar lá, ele me disse que naquele dia não poderíamos ensaiar, porque um ex-professor de bateria, de setenta e poucos anos de idade, casado pela segunda vez com uma mulher jovem de trinta e poucos, havia falecido de um ataque cardíaco, e como morava em Igrejinha (a poucos quilômetros de Três Coroas), seria velado e sepultado lá, e como não poderia deixar de ser, o meu amigo se faria presente às encomendações fúnebres. Ele perguntou-me se eu não gostaria de ir junto ao velório, e apesar de não conhecer o defunto, pra não ficar sozinho na casa dele, meio que frustrado pelo inesperado, fui.

No meio do caminho ele me disse que a viúva havia ligado pra ele comunicando o passamento e lhe dissera que o finado seria enterrado junto com a bateria, pois era desejo dele, já que não queria que ninguém pusesse as mãos em seu instrumento, que por sinal, era uma relíquia de raro e caro. Fiquei meio sem jeito com tal desejo, e confesso que imaginei que o defunto, em vida, deveria ter sido meio biruta, o que me deixou estupefato, pois isso parecia cena de um cinema surrelista, mas, vamos embora, que o funeral é logo ali, enquanto divagava sobre meu próprio enterro no qual me via sendo pondo a metros e metros pra baixo da terra junto com meus teclados e meu piano. Cheguei a imaginar que se eu fosse enterrado com meus instrumentos, certamente os defuntos mais fresquinhos não descansariam em paz porque eu, no meio da calada da noite escura, daria um jeito de tocar fazendo aquele som pra agitar a galera da necrópole. Provavelmente me expulsariam do cemitério. Surrealismo por surrealismo o meu ficou mais intenso ainda, talvez devido à fumaça da marijuana que meu amigo estava fumando pra chegar ao velório mais relaxado...

Ao chegarmos ao nosso destino, percebi que o defunto era bastante conhecido, pois havia gente de Igrejinha, Três Coroas, Taquara, Sapiranga, Canela, Gramado, entre outras cidadezinhas adjacentes, pois era professor há mais de 40 anos. A viúva veio ao nosso encontro, e pra mim ela não escondia a cara de alegria com o peso que lhe saiu das costas, já que cuidava de uma pessoa que era idosa e meio doente, e segundo as más ou boas línguas, teria se casado pra ganhar influência e projeção social:

- Ai, Tavinho, estou desolada com tudo isso. O Dagoberto não me ouvia, só bebia, fumava e fazia outras coisas mais que nem quero comentar. O que é que eu vou fazer agora? – disse a viúva se recostando em meu amigo, também baterista.

- Pois é, Maricota, são coisas da vida, isso era inevitável, afinal, todos um dia vamos embora dessa pra outra- disse-lhe meu amigo a ela.

- Mas o problema é que ele parecia ter uma saúde de ferro, e duma hora pra outra pifou, sem mais nem menos.

- Talvez não fosse tão de ferro assim como você imagina...

- Como assim? O que você quer dizer com isso?

- Olha, o Dagoberto estava já com quase 75, né?

- Tavo, ele recém iria completar no mês que vem 71... muito novo ainda...

- Mas é que...

- É o quê?

- Você sabe, Maricota, fumava duas carteiras por dia, bebia um litro de uísque, se chapava com outras tantas coisas... acho até que durou bastante...

- Ai, Tavinho, como você é mau, não tem dó das pessoas... e eu como é que fico nesse mingau todo? Com as mãos abanando? Pelo menos se vendesse aquela porcaria da bateria dele poderia ganhar uma boa grana, mas deixou registrado em cartório que quer ser enterrado com ela... isso é o fim da picada, não acha?

- Sim e não... o desejo do morto ficou sacramentado, então tem de ser respeitado...

- E ainda por cima a funerária trouxe o alaúde errado... veio cheio de furos... parecia um queijo suíço... onde já se viu uma coisas dessas?

- E o que você fez?

- Mandei devolver e que me trouxesse um alaúde decente, pois aquele não era digno de meu Dagoberto... por isso o enterro vai atrasar um pouco, acho que uma hora, mais ou menos...

E eu, ao lado de meu amigo Gustavo, ouvindo tudo, com a viúva falando exclusivamente pra ele, ignorando minha presença, como se eu fosse invisível. Ah, mas fiquei com uma vontade de tocar a vara na viúva fingida, e aproveitei o gancho e disse pra ela, me apresentando, já que nem o Gustavo me apresentara e nem ela me notara:

- Minhas mais profundas condolências, minha senhora... não conhecia seu marido, mas pelo visto era um homem de grande valor...

- Obrigada, moço, mas e o senhor é quem mesmo?

- Ah, desculpe- disse o Gustavo, esse é o Djalma- meu amigo e parceiro de música... estamos preparando um CD e ele veio pra ensaiar em casa, e pra não deixá-lo sozinho no estúdio, trouxe-o junto...

- Ah, muito obrigada pela consideração a um desconhecido... somente um artista tem esse tipo de sentimento...

Mas aí, aproveitei que a conversa estava engrenando, e perguntei à viúva:

- Mas, se seu esposo era baterista, e pediu pra ser enterrado com ela, por que a senhora pediu pra funerária substituir o alaúde? E outra coisa, dona Maricota, como é que a funerária conseguiu encontrar um alaúde, coisa raríssima de se achar no mundo de hoje?

Aí, nesse ínterim, o Gustavo me olhou, me deu uma cutucada de leve, e outros olhares começaram a buscar a nossa rodinha de papo, procurando inteirar-se da conversa e seu possível desdobramento.

- Mas como assim?- disse a viúva- não entendi... como é que uma funerária não vai ter alaúde pra pôr os mortos, se ela vive disso? Não entendi mesmo... além disso o que veio estava todo cheio de furos...

- Mas é que é difícil de encontrar alaúdes hoje em dia conservados- disse-lhe eu- e os que raramente existem estão nas mãos de colecionadores, e são caríssimos...

- Sabe, moço, eu acho que o senhor é meio biruta que nem o finado de meu marido...

- É? Mas por quê?

- Por quê? Mas, ora bolas, como a funerária não vai ter alaúde pra enterrar os defuntos? Onde se já se viu uma coisa dessas?

- Mas, dona Maricota, a senhora está fazendo uma baita confusão... alaúde é um instrumento de cordas anterior ao violão, é raro de se achar... e se seu marido queria ser enterrado com a bateria, pra que tentar achar um alaúde?

- Mas eu estou falando do caixão de defunto, seu ignorante...

- Mas então não é alaúde, sua energúmena, néscia... é um ataúde... ataúde, ataúde, ataúde, sua anta, e não alaúde... acho que o finado deveria estar possuído quando casou com a senhora... onde já se viu confundir um com o outro? Alaúde é alaúde e ataúde é ataúde...

Não fiquei no enterro. Disse pro meu amigo que me pegasse na rodoviária depois pra voltarmos pro estúdio. E quando começamos a ensaiar, já era de conhecimento de todos o escândalo da viúva burra, e, entre cervejas, um churrasco, muita marijuana, rimos até altas horas da madrugada.

Contando parece mentira, mas dá pra gente ver que a moral da historia é que devemos aprender o significado das palavras de nossa língua, pois que uma letrinha, muitas vezes, como nesse exemplo, muda o significado de tudo. O “t” leva pra uma significação; o “l” encaminha pra outra, e estamos conversados.

DJALMA

Em: 02-FEV-2009

Djalma
Enviado por Djalma em 17/04/2011
Código do texto: T2913664
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