O Fim é só o Começo

"You could wake me up with silence and I could lose all control" - Hot Water Music em "The Sleeping Fan"

Pedia conselhos somente pra se assegurar do que não deveria fazer.

"Como ou não uma pizza inteira?", perguntou certa vez, preocupado com os pneuzinhos. "Não faça isso!", advertiram na ocasião. Na hora seguinte lá estava ele empanzinado diante de oito caroços de azeitona carcomidos e abandonados dentro de uma caixa de pizza vazia.

"Peço em namoro ou não?", perguntava, e, "Vá em frente", respondiam, "peça!". No dia seguinte uma garota chorava a perda agarrada ao travesseiro. Só não conseguia seguir o deliberado contra-senso quando a pauta era suicídio.

"Me enforco ou não?"

"Não faça isso!"

E ele não fazia.

"Estouro os miolos ou não?"

"Não faz isso, é pecado!", falavam as pessoas, enfatizando a palavra "pecado" como se possuíssem autonomia para provar a metafísica do além-morte. E ele as obedecia.

Até que, em certa noite - já com a cara cheia de cerveja -, depois de horas a fio ancorado no balcão de um bar, abordou uma garota e perguntou se ela aconselharia a ingestão de sessenta comprimidos tarja preta com uma boa talagada de gin com cândida na seqüência. Ela soltou uma sonora risada e, ainda mantendo o sorriso nos lábios, falou sem pestanejar:

"Oras, e ainda me pergunta!? Vá em frente, garotão! E, se der tempo, corte a garganta e pule de um prédio. Deixe bastante sangue e dor análoga na memória dos que ficarem. Emplastre o asfalto com pedaços de suas tripas! Faça! Faça! Por favor!"

Ele não conseguia acreditar no que estava ouvindo.

"Só me mande um telegrama informando a hora e o lugar; não quero perder isso por nada deste mundo!"

E ele pediu a conta e chamou um táxi. Estava acompanhado da garota quando saltou do táxi e entrou no elevador.

*

Puxou uma caixa de sapatos moqueada embaixo da cama e jogou caixas e mais caixas sobre o lençol com estampas de cogumelos sorridentes: Prozac, Xanax, Valium, Cytotec e também duas garrafas fechadas de uísque.

"Que tal?", perguntou, exibindo os dentes.

"Nada mal", ela respondeu, "só não entendi o que alguém com um arsenal desses perdeu num boteco safado daquele..."

"Eu também não entendo", retrucou ele, pensativo. Fez-se um longo silêncio até que ele voltasse a falar:-"Eu vivo perdendo coisas, sendo destituído de coisas; penso que talvez eu as recupere nalgum bar"

Ela riu.

"Não sei, mas suspeito que não sou a primeira a cair nesse papo e vindo parar no seu quarto", falou arqueando a sobrancelha.

"Ora, claro que não", disse ele, "você é diferente..."

"Amigo, os últimos vinte caras que eu fiquei falaram a mesma coisa pra tentar me comer", soltou ela.

"Amiga, não me compreenda tão depressa", ele redarguiu. "Todas as pessoas a quem eu fiz a mesma pergunta", continuou ele, tamborilando em uma caixa do abortivo, "responderam basicamente a mesma coisa: que é pecado, crime; que é uma saída fácil que os covardes buscam, que é falta de Deus no coração e toda essa ladainha irritante, além de quererem que eu me interne num sanatório... Ah, vá!"

"Hahaha os semeadores do otimismo", ela respondendo jogando os braços pro ar - um gesto que exprime basicamente a dimensão do saco cheio que uma pessoa está de determinada coisa. "A única coisa que eu aprendi sendo otimista foi a ser pessimista", concluiu.

Ele riu.

"Gostaria muito que essa frase fosse minha"

"Mas eu vi que você não estava brincando quando me abordou com aquela pergunta", ela continuou com o raciocínio, ignorando o floreio dele, "porque eu me faço tal pergunta pelo menos dez vezes por dia"

Ele pareceu não ouvir. E falou:

"O engraçado é que a minha ânsia por morrer passou por completo; parece que o momento que eu falei com você lá no bar foi em outra vida"

Ela deu um sorriso que o deixou repentinamente sem graça.

"E novamente eu te entendo, acredita? Como você mencionou sessenta comprimidos e eu estava na mesma shit vibration eu pensei:'ele bem que poderia dividir essas gracinhas comigo'. Mas quando vi esse monte de caixas a idéia inicial minguou... É por isso que não compreendo quando falam que suicídio é covardia"

"Exato, pois não acabamos logo com tudo justamente por não termos coragem pra fazê-lo"

Silêncio. Poucos segundos de silêncio.

"Covardia mesmo é viver, cara..."

"Viver requer coragem, cara...", falou ela, tirando a jaqueta de couro e revelando uma tatuagem no ombro.

"E paciência..."

Silêncio tenso.

"Ei, mas as garrafas também não precisam ficar esperando fechadas enquanto a gente não despiroca de vez; seja cavalheiro e sirva-me um drink".

Ele foi até a cozinha pegar copos com gelo. Voltou, abriu uma garrafa e despejou nos dois copos. Os gelos estalando. Tocaram os copos em um brinde silencioso. Beberam em silêncio. Eram apreciadores do silêncio - um tipo especial de pessoas difícil de encontrar.

"Quanto tempo, Deus?" - A pergunta perspassou pela cabeça de ambos e se instalou dentro da bebida.

Largaram os copos e longo e animalesco beijo foi trocado. Rolaram sobre as caixas de remédios grudados ainda no primeiro beijo se desvencilhando das roupas. Quando estavam só com as roupas íntimas desgarraram as línguas ávidas.

Ele estava por cima, por entre as pernas dela, arrimado nos cotovelos.

A sinergia entre seus sentimentos foi a mesma novamente quando se perguntaram mentalmente:-"Precisamos mesmo disso? Precisamos mesmo desse clichê?"

A hesitação que permeiou os poucos segundos da dúvida foi suficiente para que ele saísse de cima dela e deitasse a seu lado.

Ela aninhou-se em seus braços e sorriu de maneira tímida. Ele devolveu um sorriso confuso e ameaçou falar alguma coisa mas foi calado com a ponta do dedo indicador dela com um subseqüente beijo manso e longo, muito longo.

"Não fala nada não; deixa assim", ela disse, pausadamente, dando a entonação necessária em cada palavra de que o abismo começa quando a cognição urge através da ânsia por preencher o silêncio com perguntas normalmente embasadas na empíria ou em algum ideal impossível de ser materializado/compreendido numa pessoa de carne e osso; fadada a ser impura, mundana, mendaz; todas com pensamentos transitórios parcamente definidos.

Ele limitou-se a sorrir.

Abraçou-a com força.

Manteve os olhos fechados com Like a Friend do Pulp na cabeça.

Ela, com seu corpo esguio, com uma flor de lótus tatuada no ombro direito e com cabelos pretos de boneca com algumas mechas roxas.

Ele, com seus cabelos cacheados e desgrenhados e barba de um mês por fazer; de ombros largos e peito tatuado.

Os dois dormindo de rosto colado iluminados pela luz vermelha de um abajur rodeados de caixas de remédios tarja preta e garrafas de uísque.

06/04/2011 - 15h00m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 07/04/2011
Reeditado em 10/04/2011
Código do texto: T2894044
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