Má companhia

Uma e meia da manhã, o bar estava praticamente às moscas, apenas um rapaz de pouco mais de vinte e cinco anos curvava o tronco sobre o grande balcão de carvalho segurando um cálice bojudo de conhaque e, numa das mesas, o velho escritor Wilson Maverick que, no momento, limpava um fio de espuma que teimava em escorrer pelo queixo. O literato olhou para a garrafa de cerveja perto do cotovelo, virou-a no copo para ver se caía a última gota e, desalentado, ergueu a mão chamando Enéas, o gerente do lugar. Enéas encheu dois canecos de chope e levou-os à mesa. Um caneco para Wilson Maverick, outro para si mesmo. Sentou-se à mesa com um suspiro de cansaço.
– Este é o último serviço da noite, Mestre. Já vamos fechar.
– E eu não sei, Gafanhoto? A propósito, faz um bocado de tempo que você não me pede para fazer correção nos seus textos literários. Desiludiu-se com a literatura?
– Não é isso, Mestre. Tenho tido preocupações lá em casa.
– Não me diga que sua mulher recomeçou a lhe botar cornos, Gafanhoto. É isso?
– Oh, não! A Constança criou juízo. É o meu filho. Está preso. Ele se envolveu com uma turma de vagabundos, deram uma surra em dois homossexuais que se beijavam na praça. A gente cria um filho com tanto desvelo, com lições de retidão moral, ensina a ele os preceitos religiosos e de repente descobrimos que temos um monstro comendo e dormindo em nossa casa.
– Bestalhões como seu filho devem apodrecer na cadeia.
– Ele só tem dezenove anos, Mestre. É um menino.
– Menino o caralho. Já é um homem feito. Eu publiquei meu primeiro livro aos dezessete anos, Gafanhoto. E veja bem, com meus próprios recursos. Comecei a trabalhar com treze anos, estudava à noite. Então, não me venha com essa historinha de menino sem juízo, Gafanhoto. Menino o caralho.
– De qualquer forma, o rapaz está dando um trabalhão danado. Constança parece enlouquecida de tanta dor. E o mais deprimente é que ela está jogando a culpa em cima de mim. Eu sou o culpado de tudo. Não é um inferno essa coisa de botar filho no mundo, Mestre?
– Eu não tenho a menor ideia, Gafanhoto. Não tenho filhos.
– Nunca quis?
– Quase fui pai uma vez. A minha esposa Susana àquela ocasião perdeu a criança. Ela dizia que tinha sido um aborto espontâneo. E também me culpou. Afirmava que o tal aborto aconteceu porque eu não atendi aos seus desejos de grávida.
– E foi, Mestre?
– Foi o quê?
– Foi o culpado pelo aborto espontâneo?
– Talvez. Um dia achei que Susana estava exagerando com essa piada de desejo. Começou às nove da noite. Ela queria comer carambola. Onde diabos eu iria achar a maldita fruta naquele horário? Ela ali, me aporrinhando por causa de carambola. Carambola! Pode existir no mundo fruta mais ordinária? Cheira a mato ruim, é ácida e, ainda por cima, aguada. Odeio carambola. Susana encheu o meu saco até as onze horas. Peguei o carro e acabei zanzando pelas ruas, batendo nas portas de quitandeiros, azucrinei meio mundo. Então fui ao quintal onde minha mulher jurava que tinha um pé carregadinho de carambolas, pulei o muro, depois de vencer o medo mórbido que tenho de cães, e consegui pegar um punhado das frutinhas. Estavam verdes, não era ainda época de maturação. Pois Susana comeu as frutas. E com o mesmo prazer que eu sinto ao tomar uma legítima uma cerveja gelada. Lá pela meia-noite Susana queria pizza com queijo de búfala. Consegui encontrar uma pizzaria lá nos confins do inferno que ainda permanecia aberta até altas madrugadas. E o martírio continuou. Eram três da manhã quando ela decidiu que queria comer ovos cozidos. Foi a gota d’água. Saí de casa e fui dormir num hotel. De manhã liguei o carro e caí na estrada, sem um destino programado. Acabei numa cidadezinha praiana, fiquei por lá uns sete meses. Soube que Susana perdeu o filho no dia em que nos encontramos para assinar os papéis do divórcio. Foi nessa ocasião que ela me culpou pelo aborto espontâneo.
– É uma história e tanto, Mestre.
– Uma história comum, Gafanhoto. Coisas assim acontecem diariamente.
– Pode ser. Mas é a primeira vez que ouço que os desejos exóticos de uma mulher mataram o sonho de alguém de ser pai...
– Pois é. Jurei a mim mesmo que seguiria ao pé da letra a frase do personagem Brás Cubas, de Machado de Assis.
– Qual frase, Mestre? Desculpe-me, mas li Memórias Póstumas de Brás Cubas há muito tempo...
– “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
– Ah! Lembro-me perfeitamente, Mestre. Mas estou com uma pergunta entalada na garganta. Custava ao senhor ir à cozinha e cozer os ovos para sua mulher?
– Para se tornar um bom escritor, Gafanhoto, você precisa destrinchar as intenções ocultas naquilo que ouve; prestar atenção nas entrelinhas. Veja se entende de uma vez: Ela queria que eu cozinhasse os meus ovos. Você cozinharia os seus testículos em prol de um feto?
O rapaz debruçado no balcão de carvalho, que parecia estar atento à conversa dos dois amigos, começou a rir. Vendo que os dois homens olhavam-no com curiosidade, pegou o cálice de conhaque e dirigiu-se à mesa. Cambaleava, sinal de que já emborcara muitas doses.
– Posso me sentar com os senhores? – perguntou com legítimo sotaque lusitano.
Wilson Maverick indicou a cadeira vazia, o estranho sentou-se e deu um gole no conhaque. Depois estendeu a mão para o escritor:
– José Almeida, ao seu dispor.
O velho escritor apertou a mão do jovem.
– Wilson Maverick.
– Sei quem é o senhor. O grande escritor de novelas de mistério. Saiu uma reportagem de página inteira n’O Sentinela, jornal de Lisboa. Uma reportagem ilustrada com a sua fotografia.
– É... eu li o jornal.
– Desculpe-me por estar a ouvir a conversas dos senhores. E pelo riso.
– Achou a historinha do meu fracasso matrimonial engraçada, é?
– Possui seus laivos anedóticos.
– Está de passagem pelo Rio?
– Estou a fazer turismo. Cheguei de Lisboa a esta cidade há duas ou três horas, deixei a bagagem no hotel e estou a beber pelos bares.
– Está fazendo turismo sozinho?
– Claro. Digamos que minhas pretensões são para o turismo sexual. As mulatas brasileiras são exuberantes como a floresta amazônica.
Enéas, chateado com a intromissão do estranho no diálogo com o amigo escritor, levantou-se irritado.
– Agora os senhores terão que se retirar, vamos cerrar as portas.
– Não posso tomar mais um trago? – indagou José Almeida.
– Já passou da hora de fecharmos.
– O bodegueiro poderia me chamar um táxi?
Enéas sentiu-se ofendido com o tratamento. Wilson Maverick interveio:
– Levo você ao hotel no meu carro.
– Obrigado, amigo. Eu aceito a oferta – disse José Almeida. Tirou do bolso da calça uma gorda carteira, recheada de dinheiro.
– Faço questão de pagar as contas, a casa aceita euros? Ainda não tive tempo para fazer conversões cambiais.
Enéas trocou um olhar de crítico com Wilson Maverick. O português estava se exibindo.
– Aceitamos euro, escudo, dólar, iene, franco, marco, aceitamos até yuan ou baht – disse Enéas.

Já no carro, José Almeida cismou que desejava tomar o último trago. Maverick concordou. Foram a um bar, depois a outro – no fim o escritor cansou-se de ver o sujeito entornar copos e copos de conhaque em bares elegantes, botecos populares, espeluncas ordinárias.
– Agora chega – disse o escritor quando carregou o turista totalmente embriagado para o carro, aí por volta das quatro da manhã.
– Mas eu quero ter coito com uma mulata!
– Diga-me o endereço do seu hotel.
– Eu quero copular com uma mulata!
– Você não vai comer ninguém, cara, vai mesmo é dormir! Onde fica o seu hotel?
O português embatucou. Ficou uns dez minutos tentando lembrar-se do endereço, mas a verdade é que até o nome do hotel lhe fugira da mente embotada pelo álcool.
– Vou levar você para minha casa, assim que curar do porre sua memória volta. Está bem?
– Está bem.

Foi um sacrifício conduzir José Almeida para dentro de casa, de tão bêbado o português mal conseguia arrastar as pernas. Seu corpo desabou no sofá-cama como um saco de batatas. Então uma mulata belíssima, pelo menos quarenta anos mais nova que Wilson Maverick, adentrou a sala. A imensa barriga anunciava a gravidez avançada.
– Esta é Susana, minha esposa – apresentou o escritor.
– Mas lá no bar o senhor disse ao bodegueiro...
– Sua memória está se recobrando rapidamente, meu jovem. A historinha que contei estava mesclada com muita fantasia. Escritores são mentirosos profissionais, José Almeida.
– Mas...
– Mas sobre os testículos eu não menti, Susana está danada da vida porque ainda não os comeu cozidos. E não precisam ser necessariamente os meus ovos.
Wilson Maverick recolheu uma grande almofada sobre a poltrona, afofou-a sorrindo para José Almeida que, paralisado pelo horror, fitava-o com uns olhos estalados de sapo.
– Sinto muito, garoto – disse. Voltou-se para a esposa:
– Susana querida, vá pegar minha navalha no banheiro.
– Oh, você é um amor, benzão! – disse ela, feliz como um colibri.