Os prédios falam no centro do Rio de Janeiro
Os prédios do centro do Rio falam.
Basta que eles se vejam sós durante as madrugadas, particularmente as de inverno, quando a temperatura fica em torno de quinze graus - glacial para os padrões cariocas - e ninguém se atreve a enfrentar as ruas. Eles conversam. Às vezes animadamente, às vezes se lamentam amuados, e outras vezes só falam para passar o tempo.
Os mendigos e sem teto, que estão nas ruas mesmo nas noites frias, ouvem as vozes que se misturam com o vento e já reconhecem os prédios, particularmente os que os abrigam sob suas marquises, e já desistiram de comentar sobre isso com outros que não moradores das ruas. Não são pessoas a quem a sociedade dá qualquer crédito, ainda que o assunto, que não é o caso em questão, o mereça.
Os prédios novos e maiores, cheios de vidros e com elevadores panorâmicos, falam sobre negócios, economia, política, assuntos que interessam aos homens que os ocupam durante o dia.
Os antigos, com suas arquiteturas rebuscadas e fachadas consumidas pelo tempo, falam do seu passado glorioso e do que já aconteceu nos seus interiores ou arredores. Falam sobre homens importantes que já os freqüentaram, assim como reclamam da frivolidade dos prédios novos, de como as coisas hoje já não são perenes, e como ilustres ocupantes do passado, alguns de famílias reais, jamais entrariam em um prédio com paredes lisas e tomadas de vidros.
Uma determinada esquina da avenida Rio Branco tem um arranha céus em vidro e ferro frente à frente com um antigo prédio com fachada neoclássica. Lá as discussões são particularmente acirradas, pois este prédio antigo, ao contrário dos demais, não se contenta em se lamentar e ignorar os novos, mas confronta o seu vizinho moderno e questiona a futilidade do que ele considera a vida moderna que se desenrola no interior do outro.
- Serei restaurado - começou o antigo em uma noite particularmente fria - e terei a minha fachada completamente reconstruída. Voltarei à minha beleza e importância originais!
- Quem sabe não lhe acrescentam alguns vidros e uma aparência mais imponente?
- Para que executivos sem rumo como os que lhe freqüentam possam se enervar e brigar pelos meus corredores como fazem nos seus? Não, prefiro os meus freqüentadores, de uma outra época, que precisam de um senso estético atrelado aos seus objetivos, que consideram as minhas belas curvas na fachada como algo essencial, e não a sua estrutura nua e funcional.
- Estrutura de vidro que permite a luz natural no meu interior, que permite que os meus ocupantes vejam o mundo exterior. Minha estrutura reta lhes mantém com as mentes claras, leves...
E assim a discussão seguia, por horas e horas, até que as primeiras pessoas começavam a aparecer no final da madrugada e os prédios faziam silêncio.
A reforma do mais antigo foi o assunto por semanas, até que ela de fato começou. Engenheiros e operários entravam e saíam das suas instalações, percorriam seus corredores e tomavam amostras da sua fachada. E o prédio falava, orgulhoso, noite após noite, com seu interlocutor moderno do outro lado da rua. Mesmo os inevitáveis tapumes e andaimes não diminuíram a sua confiança.
A surpresa veio na manhã que ambos perceberam que não só o antigo, mas também o prédio moderno passaria por uma obra conduzida pelos mesmos operários e engenheiros. Eles escutaram os homens nos seus interiores e tentaram apreender o que acontecia, chegando ambos à conclusão quase simultânea: seria construída uma passarela de ligação por sobre a rua unindo os dois prédios. Obra ousada e única na Rio Branco, que despertava curiosidade e prometia ser bela. Um túnel de vidro e ferro partiria do terceiro andar de um para o outro.
Naquela noite eles não sabiam como abordar o assunto e ficaram em silêncio, até que o antigo o quebrou:
- Seremos, então, um só prédio - disse, no seu modo direto e grave.
Ao que o outro respondeu, de uma vez, como se a pergunta abrisse o caminho para as suas aflições:
- Sim, mas quem? Qual das personalidades sobrará? Eu ou você? Seremos um prédio antigo? Um novo? Não sei...
- Não sei, nunca soube de um caso como este. Não sei qual das personalidades prevalecerá quando a passarela nos tocar e formos um único prédio.
E eles alternaram noites em que falavam sobre isso com noites em que faziam silêncio pensativo, mas não mais tinham as animadas discussões sobre as vantagens e desvantagens de cada um deles e porque um seria melhor que o outro.
A medida que a passarela crescia de cada um dos lados da avenida, a angústia de ambos aumentava. Cada um deles acreditava secretamente que prevaleceria na união das personalidades, e cada um acreditava pelo motivo oposto ao do outro: um por que era mais antigo e tradicional, o outro porque era mais novo e com mais anos de existência pela frente.
A manhã em que a passarela foi completada e os prédios foram interligados foi de grande angústia para ambos e o mais novo chegou mesmo a falar em pleno dia, com diversos ocupantes que poderiam ouvi-lo, mas não foi capaz de se controlar, e murmurou algo ininteligível nos minutos finais.
Ao contrário do que ambos imaginavam, nenhum dos dois sobreviveu àquele momento. Um não sobrepôs o outro, mas surgiu uma nova personalidade que misturava as metades moderna e neoclássica em um único prédio.
O novo prédio é arrogante e diz ser o futuro, pois compreende ambos os lados. Conversa com os outros nos seus arredores, mas às vezes é pego falando sozinho.
Um prédio próximo, que abriga consultórios médicos na maioria dos seus andares, acredita que o vizinho pretensioso sofra de um transtorno de dupla personalidade.
Niterói, Março de 2011.