Como o diabo gosta

Escutei o primeiro pio da coruja – o nosso sinal. Olhei com aflição meu marido dormindo ao lado da cama. Dormiu com os óculos enquanto lia. No quarto iluminado pelo clarão da lua entrando pela janela aberta a sua careca precoce tinha uma tonalidade cinza-pálida. Toda noite lia alguns Salmos antes de dormir – em voz alta para que eu também me comprometesse com a palavra de Deus. Depois dormia, geralmente de óculos, a Bíblia aberta sobre o peito. Meu marido nem sempre tinha sido uma mosca-morta. Antes de se converter em fanático religioso fazíamos sexo com regularidade; comíamos no restaurante de nosso bairro; aos sábados reuníamos os parentes e amigos e assávamos uma carne, bebíamos cerveja e à noite íamos dançar numa casa noturna de forró; o cinema no shopping aos domingos era sagrado – éramos um casal comum, sem preocupações financeiras, um feliz casal sem filhos. Até que um dia surgiram em casa dois homens de uma seita religiosa estranhíssima, radical, advertindo contra todos os pecados que supostamente carregávamos desde a criação do mundo e proibindo-nos de praticar as coisas mais inocentes – sexo, por exemplo, segundo os pregadores, era um ato animalesco, sujo, nojento e só tinha aprovação divina se praticado com o intuito de procriar. As visitas dos homens se tornaram regulares, meu marido passou a frequentar os cultos e a distribuir cestas básicas com os mantimentos de nossa mercearia – o dinheiro começou a faltar, mas ele, meu marido, sempre tinha a frase-feita na ponta da língua: Quem dá aos pobres empresta a Deus. Levou-me a contragosto para conhecer o templo, forçou-me a fazer amizade com o líder doutrinário e sua esposa. Logo eu fazia parte do grupo feminino de oração que visitava as prisões. E foi na prisão que conheci Marola. Fascinou-me o jeito como riu ao ouvir as pregações religiosas; deslumbrou-me seus bíceps enormes cobertos de tatuagens de caveiras, serpentes e adagas sangrentas; encantou-me o jeito como lançou os olhos verdes em cima do meu vestido longo fechado no colarinho, a maneira rude como balançou um dedo no meu rosto e disse que embaixo daquele recato todo queimava uma vadia desesperada por carícias. Mostrou-me as mãos grandes e simulou apalpadelas nos meus seios – minhas colegas ficaram horrorizadas, eu me senti mulher em cada fibra do corpo. Durante a semana sonhei com seus cabelos louro-encardidos, grandes e desalinhados. Comecei a visitá-lo sozinha, olhávamos-nos com desejo tão intenso que quando eu voltava para casa percebia a calcinha gosmenta aderindo-me no vértice das coxas. Quando ele me propôs um encontro íntimo na cela apelidada de rala-rala, senti que a coisa era não só natural como inadiável, era a sublimação de nossas almas. Meses sem conta, uma vez por semana, atingimos orgasmos inimagináveis naquele catre infecto da prisão. Consegui levar maconha para Marola buscando-a em bocas que ele indicava – trouxinhas devidamente escondidas na vagina. Usando o mesmo recurso, entreguei-lhe um celular pré-pago. A minha conta bancária ficou gorda – quase todos os dias sua quadrilha fazia depósitos em meu nome.
Ouvi o pio da coruja pela segunda vez. Marola me aguardava próximo da casa num carro roubado - fora beneficiado pelo indulto natalino. A coruja piou pela última vez – “ao terceiro sinal, venha imediatamente”, ele dissera. Saltei da cama, olhei meu marido dormindo de óculos, a Bíblia em cima do peito. Estava pronta, tinha me deitado calçada de tênis, vestia calças jeans e camiseta preta. Pulei pela janela aberta e fui ao encontro de minha sina – a vida a partir de então seria como o diabo gosta.