Das transgressões sexuais

Às cinco da tarde o corpulento detetive Sam Spada tirou o cigarrinho feito à mão da aba da orelha, apertou-o com os nodosos dedos polegar e indicador para melhor compactar o fumo ordinário e, sem mais trololó, explicou à jovem e agônica cliente que o esposo dela tinha, sim, uma amante. Meticulosamente, para fazer jus aos altos honorários, Sam Spada descreveu a rica residência alugada pelo marido e pormenorizou a portentosa amante que, ao que parece, gostava de estar sempre deitada e nua, numa disponibilidade para o sexo que seria capaz de escravizar todos os machos desde o homem de Neandertal – ou Adão, caso sua cliente fosse adepta do criacionismo. Depois dessas revelações deveras cruciais à dignidade ultrajada da contratante, sem mais preâmbulos Sam Spada entregou-lhe uma cópia da chave da casa dos prazeres ilícitos, astuta e misteriosamente surrupiada pelo seu sócio Daniel Hammeto, pegou o chapéu estilo Tyrone Power sobre a mesa e se escafedeu dessa fábula.
A continuar nessa pegada, vou estourar os até 3.160 caracteres exigidos para este texto – sejamos, pois, o mais sucintos possível. Ao toque de caixa direi apenas que nossa heroína levou quatro horas para embelezar-se, tomar um táxi, entrar na casa que o marido tinha alugado e invadir o quarto dos amores traiçoeiros. Os dois – marido e amante – estavam deitados lado a lado. Ambos dormindo, ele com um sorriso de querubim nos lábios lascivos, ela com a boca aberta num milenar aturdimento de viscosas misturas de hidrocarbonetos pré-históricos. A situação era tão inverossímil que a esposa pensou que desmaiaria. Ficou um longo tempo olhando o casal no leito de pecado, a voz embargada, os olhos lacrimejantes. Então sentiu piedade de si, do marido, do mundo. Melhor ir embora. Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite. Na sala, desabou numa poltrona. Se ele estivesse com uma prostituta, compreenderia com relutância; se ele estivesse com uma ninfeta, ficaria indignada; se ele estivesse com um travesti, ficaria transtornada. Mas ser substituída por uma boneca inflável, ah não! Isso não!

(Com esse conto venci o II Concurso Literário promovido pela revista Piauí, da Editora Abril. O foi trabalho publicado na edição nº.30 de março de 2009).