O homem da casa

O rapaz recebeu a notícia da morte do pai assim que entrou na cozinha. Não manifestou nenhum sentimento, sentou-se à mesa e serviu-se de café, leite, pão e margarina. Morava com a avó materna desde os três anos, quando ficou órfão de mãe. Ele e o pai se viram talvez uma dúzia de vezes ao longo de quinze anos, num constrangimento de estranhos.
Você tem que ir ao enterro. Seu pai possuía uma chácara, você agora tem direito a uma parte da herança, explicou a avó.
O rapaz continuou a tomar o desjejum, imperturbável. Era calado; a avó desconfiava que o neto fosse acometido de alguma espécie de idiotia – já havia completado a maioridade e jamais aprendeu a ler, por mais que ela se empenhasse com aulas diárias, professora primária que foi a vida toda até se aposentar. A avó nunca tinha ouvido falar em dislexia.
Vá se trocar e arrumar a mala; vou te levar à estação rodoviária, disse a avó, seca e aborrecida com a pequena alteração na simetria de seu cotidiano sempre plano, limpo, imutável. O rapaz foi para o quarto, tirou o macacão de jardineiro autônomo, vestiu a roupa de ir à missa acompanhando a avó, enfiou algumas peças na mochila – inclusive o macacão de trabalho – e pegou as parcas economias numa caixa de papelão. A avó não fazia ideia, mas dinheiro ele sabia contar.
A avó levou-o à estação rodoviária, colocou-o no ônibus e ficou vendo o veículo se afastar com um sentimento de perda inexorável – a casa ficaria muito vazia sem a sombra de aquele ser solitário que ficava dias sem articular uma única palavra.
O rapaz chegou ao povoado natal por volta das dez da manhã, a tempo de ver o esquife saindo da igrejinha de uma só torre. Uniu-se ao cortejo e seguiram pela rua principal empoeirada até o cemitério. Ali, ficou parado e mudo, olhando o caixão baixar na cova. Uma única pessoa estava com roupa de luto, uma jovem de uns vinte e dois anos, morena clara de cabelos curtos e ondulados. Assim que o cortejo se desfez, dirigiu-se à moça e lhe entregou a certidão de nascimento, olhando-a faminto de informações, mas sem abrir a boca.
Eu sabia que ele tinha um filho, esclareceu a jovem, após ler o documento. Dobrou-o e devolveu ao rapaz.
Eu era a esposa dele, disse, esperando alguma reação. O rapaz continuou imperturbável, olhando-a sem estranheza. A moça suspirou ante a indiferença do rapaz – bem que o falecido marido afirmava que havia posto no mundo um filho avoado. Suspirou novamente, pegou-o pelo braço.
Vamos para casa, determinou, observando que o rapaz estava com a pele eriçada pelo vento gelado das regiões sulinas. Foram para uma antiga caminhonete Ford azul, o rapaz jogou a mochila na carroceria e entraram na cabine. A viúva deu-lhe um blusão de couro.
Vista isso, era do seu pai.
O rapaz quis atendê-la, mas o agasalho era pequeno demais. Só então a jovem pôs reparo na largura dos ombros do enteado. Riu, ligou o motor e foram para a chácara. Durante a viagem ela bem que tentou entabular diálogo. Em vão.
Agora você é o homem da casa, decidiu a jovem assim que entraram na residência. Vá trocar essa roupa domingueira por uma de trabalho e comece por tratar das criações. Chamo você quando o almoço estiver pronto.
Sem emitir um som, o rapaz foi cumprir as ordens: vestiu o macacão de jardineiro no banheiro, em seguida deu ração aos porcos, milho às galinhas, foi aos canteiros de morango e arrancou com as próprias mãos as ervas daninhas. Depois passeou pela propriedade, maravilhando-se com as árvores frutíferas, com os pinheiros em tão grande quantidade que o céu era uma festa de gralhas azuis. Passeou até sentir cansaço. Então se deitou de comprido embaixo de uma araucária e ficou sentindo o vento a soprar nas ramagens. Estava quase adormecendo quando sentiu que um pé lhe tocava o ombro. O rapaz fitou a viúva de pé ao seu lado.
O almoço está pronto, anunciou a jovem. Sentou-se ao lado do rapaz, as mãos entrelaçadas nas pernas. – Seu pai sofreu um derrame cerebral e ficou imprestável, não se movimentava e não conseguia falar. Durante três anos cuidei sozinha dele e da propriedade.
Agora eu estou aqui, asseverou o rapaz, abrindo a boca pela primeira vez. A jovem riu, fascinada. Depois o semblante sombreou-se de tristeza.
Há três anos vivo na mais completa solidão, ela confessou.
Sei bem o que é solidão. Eu nunca tive amigos, não tive nem mesmo uma namoradinha, ele disse.
Olharam-se nos olhos. Pouco depois as gralhas azuis ficaram alvoroçadas com os gemidos urgentes que dois estranhos animais emitiam ao se digladiar no acamado de folhas secas.