Melancolia e o Fio da Navalha

A porta cede quando ele tenta enfiar a chave na fechadura. As luzes estão apagadas. É a segunda vez que arrombam a porta em menos de um mês. Acende a luz da sala. Tito, o gato siamês de um olho só, se espreguiça no sofá. A casa está em ordem. Ele alisa o gato. Despe-se no quarto, fitando seu reflexo no espelho da penteadeira. Seu corpo já não é mais o mesmo. Senta na privada e folheia um livro qualquer enquanto esvazia o intestino. Limpa o rabo, dá descarga e liga o chuveiro. Há pelo menos 23 anos faz os mesmos movimentos com o sabonete e com a esponja; a mesma quantidade de shampoo e a mesma maneira de lavar os cabelos. Fecha o chuveiro e alcança a toalha. A mesma ordem ao enxugar o corpo, repetida ao longo de 23 anos: mãos, braços, peito, rosto, orelhas, costas, coxa, pau, cu, pés. Veste uma samba canção de seda e pendura a toalha no varal. Enche o pote de ração do pequeno Tito e coloca a lasanha congelada no microondas. Liga a televisão. É dia de futebol e ele passa longe dos canais que transmitem os jogos. Tito era uma vitima indireta do esporte: em época de Copa do Mundo, nasceu Tito e mais cinco filhotes. Era uma casa de família, com dois cachorros. Os cachorros enlouqueceram com os fogos de artifício e Tito foi o único que sobreviveu após o acesso de loucura dos cães. Custou-lhe um olho da cara, a Copa do Mundo. Ele troca de canal. Outro tsunami. Troca de canal. Pessoas ao redor de uma piscina falando mal umas das outras. Troca de canal. Desenho japonês idiota. Desliga a TV. Come a lasanha olhando uma mancha de umidade na parede da cozinha. Lava a louça, limpa a caixa de areia do gato, lava as mãos e vai dormir. Mas não consegue. Ele já não suporta mais não saber o motivo de existir. Ele já não suporta mais não saber se há um Deus onipresente, onisciente, onipotente e um Paraíso e se há também um Diabo e um Inferno. Explicações de explosões espaciais não o convencem como origem da vida. E, se sim, e se tudo for realmente plausível? Se sim, por que a vida tem que ser só isso? Nascer, trabalhar, procriar, morrer. Uma somatória de dias que serão esquecidos de um ser que ninguém conheceu e após duas gerações - quando não, muito - será absolutamente esquecido? É só isso mesmo? Se viemos dos macacos, por que estes não se transformam em seres humanos diante de uma platéia eufórica no zoológico? Todos os livros que leu estragaram-no para a realidade. Não que ele fantasiasse com romances impossíveis ou com conversas por telepatia, mas doía ver que respeitadas cabeças do passado sonharam e escreveram com/sobre super-homens no futuro e tudo o que temos hoje são só sonhos de dinheiro e consumo e uma meta convencional e duvidosa de felicidade que poucos conseguem alcançar e mesmo assim ficam entediados; a evolução da tecnologia para celulares, alisadores de cabelos que surgiram, mais velocidade para os carros e para os computadores enquanto teorias seculares e até mesmo milenares não chegam a lugar algum pois os poucos que realmente se importam com a questão são tidos como loucos, pessimistas, subversivos e considerados um parasita na sociedade. Ele não consegue dormir. Volta no tempo tentando encontrar o momento em que seus sonhos e capacidade de amar se liquefizeram e escorreram para o ralo do esquecimento. Ele aperta os olhos e vê pontos amarelos, vermelhos, com a escuridão ao fundo, na retina. Respira fundo para não chorar. A tristeza toma forma e ele vê no não-existir a possibilidade de encontrar suas respostas ou então uma maneira de não mais ser acometido por tantas perguntas sem respostas; uma maneira ou um lugar em que seja poupado da desgraça que é pensar. O pensamento do garrote sufocando, o pensamento da lâmina afiada deslizando pelos pulsos, o mergulho fatal do décimo andar e o gosto da pólvora um milésimo de segundo depois do gatilho ter sido puxado e milésimo de segundo antes da escuridão inescrutável e sem volta; tais pensamentos assustam-no. Ele ouve barulho de passos na sala. A luz do corredor penetra por uma pequena fresta da porta de seu quarto. Há alguém dentro de seu apartamento. Alguém querendo alguma coisa. Mas o quê, se ele tem tão pouco? E esse tão pouco foi conquistado após dias longos e insuportáveis das nove às cinco dentro de um escritório e das sete às onze numa sala de aula de faculdade que ele, apesar do desapego com as coisas materiais, se surpreende sendo tomado por uma fúria incontrolável diante da possibilidade de ver seu suor materializado em móveis e aparelhos eletrônicos sendo roubados diante de seu nariz por algum espertinho de plantão. Então ele sai do quarto na ponta dos pés e acerta a nuca do larápio com um direto certeiro. O gatuno, surpreso e confuso com o violento golpe repentino, tenta alcançar a porta mas tropeça no Tito e cai no tapete macio da sala. Ele não hesita e pula de joelhos nas costas do ladrão e sente certo prazer ao sentir ossos sendo quebrados. Debruça-se em cima do larápio e aplica um mata-leão. E aperta com força. Sente as mãos do indivíduo batendo em seus braços, pedindo clemência. Mas ele aperta mais. "Então é isso", o pensamento aflorou em sua mente, "sinto-me agora como no momento em que deposito meu falo num ventre fértil e posso gerar a vida após movimentos de entra-e-sai". Distraidamente, apertou mais um pouco o pescoço do indivíduo. "O ato carnal assim como o assassinato interagem de alguma forma; é a vida em jogo". E continuou seu raciocínio: "Posso arrancar o pau e depositar meu sêmen em qualquer outro lugar e não há vida, mas se eu deposito dentro a possibilidade de uma vida ser gerada é grande". Então ele decide metaforicamente gozar dentro e aperta o estrangulamento o máximo que pode; seu bíceps machucando um pescoço quebrado de um farrapo inerme de gente. Tito, com seu único olho, assiste de camarote aquela cena de loucura gratuita. Ele se levanta, pega Tito no colo e acende a luz. Percebe que está de de pau duro. E lá estava um cadáver sobre seu tapete, de olhos esbugalhados! Morto. "Morto, incrivelmente morto", ele sussurra na orelha do gato,"e eu que matei, Tito". Ele não se sente tão bem assim desde os dezesseis anos de idade. Encosta a porta e volta pra cama. Ligaria para a polícia pela manhã pra informar o ocorrido. Apaga a luz do quarto e dorme quase que instantaneamente com ares querubínicos e com um sorriso de felicidade no rosto.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 14/03/2011
Reeditado em 14/03/2011
Código do texto: T2846674
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.