As bolas de futebol viraram pássaros
Era a última rodada do campeonato brasileiro daquele ano e o Maracanã estava tomado. Fervia com o calor sulfúrico do dezembro carioca misturado à extrema excitação dos torcedores que o lotavam. O Flamengo e o Corinthians iniciavam o seu confronto naquele exato instante e quem vencesse seria o campeão.
Uma estranha física de partículas movia aquela massa humana. A entropia aumentava e diminuía em função da posição da bola no gramado. Entropia que podia ser levada a tal extremo, que, se direcionada para alguma causa, moveria uma revolução.
Após alguns minutos de jogo, um atacante do Flamengo disparou um chute que fez a bola cortar o ar em direção ao gol defendido pelo Corinthians. Ela parecia ir em velocidade cumprir o seu objetivo. O goleiro, já se dando por vencido, apenas olhava a bola voar em direção ao gol.
Mas ela começou a desacelerar repentinamente, e mudar sua cor para tornar-se amarelada. Logo ela desacelerou a ponto de ser visto que a sua forma também mudava. Ela diminuía e alongava-se. A bola parou por completo quando passava a linha que determinaria o gol e fez a volta em direção ao campo.
Só que não era mais uma bola de futebol, e sim um pássaro. Um belo canário amarelo.
A confusão começou de imediato. A bola-canário teria entrado no gol? Os flamenguistas alegavam que sim, mas os corintianos que não, e que, se tivesse entrado, tinha sido como canário e não como bola, o que não valeria.
Houve briga e a polícia precisou separar os jogadores. O juiz, confuso, reiniciou o jogo sem reconhecer o alegado gol.
Uma segunda bola foi trazida.
Um jogador - que insistia que mais importante que o jogo era entender porque a bola virara um canário - foi substituído e o jogo recomeçou.
O goleiro chutou para repor a bola e ela subiu, desacelerou, azulou e virou um periquito.
Foi trazida outra bola. Os jogadores do Corinthians começaram a alegar que isto era armação do Flamengo para que o jogo não fosse realizado, mas o juiz conseguiu a ordem mais uma vez e o jogo foi reiniciado.
Mais uma bola, mais um processo de transformação, e sai desta vez uma belíssima e colorida arara. O juiz já pensava em interromper o jogo, mas, ao imaginar o motivo que teria que escrever na súmula, desistiu da idéia.
Vem uma nova bola, mas esta, quando chutada, não só começa a ficar esverdeada e mudar de forma, mas cresce significativamente, e surge uma massa verde, escamosa, de uns dez metros de comprimento: um dragão e não um pássaro, desta vez.
O dragão, ao contrário dos pássaros, dá uma guinada em seu vôo e não vai embora do estádio, mas volta, voa rasante e começa a cuspir fogo sobre os jogadores, assando-os e os comendo.
Um dos jogadores, conhecedor de histórias fantásticas, grita:
- Mas todos os dragões foram mortos pelos guerreiros do passado!
O dragão o come, sem nem assar, para mostrar que merece respeito.
Outro, cético, grita:
- Mas dragões não existem!
Ele é o próximo devorado. O dragão conhece a filosofia de Berkeley e não gosta da idéia de não existir. Além disso, há o risco dos outros jogadores serem convencidos de que ele não existe.
Um terceiro, mais prático, grita:
- Mas um dragão não é um pássaro, e sim um réptil!
Deste o dragão resolve poupar a vida.
Logo diversos jogadores foram devorados e o dragão já se sente alimentado. Ele, então, voa para longe, tranqüilo.
***
Aquela estranha tarde de domingo foi discutida e, claro, questionada até a exaustão, para logo ser sobreposta por outro assunto.
Mas os acontecimentos nunca foram de todo esquecidos. É fácil encontrar nos bares do Rio de Janeiro uma roda de conversa que discute calorosamente se aquela primeira bola teria ou não entrado, e se o Flamengo não deveria ter sido considerado campeão brasileiro daquele ano.