Nada, é ver.
No centro de Preter, ao grande relógio encimado em um bloco retangular de granito com aproximadamente 30 metros de altura por 15 de base, a multidão prestava a saudação regular. Circulavam ao redor do obelisco em contínuas espirais. De olhos fechados, inspiravam profundamente com o nariz apontado para o céu. Buscavam sentir no mais profundo da alma o odor que o tempo exalava.
Os anciãos místicos diziam que o tempo estava acabando. A única forma de detê-lo era através da inspiração. A cada golfada de ar retida nos pulmões o presente se mantinha ativo. Ao expirá-lo, o passado cobria o céu de cinza cada vez mais escuro.
O sacerdócio em Preter era praticado pelos cientistas ficando com os místicos a tarefa nada agradável de convencer as pessoas de que o tempo não era uma ilusão pois se ele acabasse o nada passaria a vigorar e diante do nada, nada pode ser feito. Nesse compasso, transcorria a vida em Preter. Certo dia um forasteiro sabendo do que se passava nessa cidade, adentrou os seus limites e indo direto ao sumo sacerdote o inquiriu:
— Magnânimo sumo sacerdote, peço-vos conceder-me vossa preciosa atenção para a exposição que farei para salvar esta que é sem dúvida um modelo de avanço civilizatório ao qual...
— Hora, basta! Diga logo o que quer. O tempo é curto — pontuou o intempestivo sacerdote.
— Tenho a solução para manter o controle sobre o tempo!
— Estou ouvindo.
— Criei o relógio sem ponteiros.
Nesse momento o sumo sacerdote enclinou o corpo para frente e arquejando as sobrancelhas, sorriu cinicamente aguardando a explicação.
— Nós vamos ludibriar o tempo. Todos os relógios da cidade não terão mais ponteiros. O relógio passará a ser meramente um círculo vazio. Ao olharmos para ele não saberemos que horas serão. Não haverá mais atrasos; não havendo mais atrasos não haverá mais pressa; não havendo mais pressa sobrará mais tempo; sobrando mais tempo nunca faltará tempo para se fazer alguma coisa.
— E como se organizarão as coisas? Os compromissos? As coisas precisam ter um começo, meio e fim.
— Depois de muito refletir sobre essa questão concluí que é justamente isso que nos impede de evoluir.
— Explique melhor.
— Somos muito organizados. Mas uma organização toda ela dependente do tempo. Por isso qualquer coisa que organizemos não durará para sempre. Um dia ela acaba e tudo precisará ser reorganizado. Chamamos a isso de evolução mas não passa de recolher os cacos e dispô-los em nova configuração.
— Mas isso não significa dar força total para o nada?
— Nada disso. O que acontece é que exatamente o nada contém tudo. O nada não tem nada a perder. Pois a ele nada se atribui.
— Isso está me parecendo uma filosofia zen.
— Se fosse, estaríamos na mesma. E isso de nada adianta. Zen ou qualquer outra coisa só acrescenta e a cada coisa acrescentada ao nada, o nada deixa de existir passando a ser algo. E isso é algo de que não se precisa. Algo nada tem a ver com nada.
Nada de horas, nada de minutos, nada de segundos, nada de instantes, nada. O que precisamos é de nada.
— Brilhante! Como não pensei nisso antes? — exclamou entusiasmado o decano dirigente. Como poderemos então concretizar essa idéia? Qual o próximo passo? O que temos a fazer?
— Nada.
— Só isso? Simples assim? Quer dizer: ficar de braços cruzados?
— Quando o tempo deixar de existir, o nada se encarregará de tudo.
— E qual é o nosso papel ativo nesse processo.
— Ficar totalmente quieto. Nada fazer.
— Mas isso não faz sentido!
— Ainda bem. Pois é essa a idéia: o nada está além dos sentidos.
— Tem que haver algum observador nessa história. Alguma coisa que perceba o que está acontecendo para comprovar, corroborar sua existência. Uma consciência.
— Claro que existe. Esse “observador” é o nada.
— Não acha que essa idéia está metafísica demais?
— Nada importa o que eu acho. Tudo que tem importância se julga melhor do que o nada. Dessa forma corre-se o risco de se ficar sem nada.
— Muito bem. Hoje mesmo irei anunciar a todos, o que tenho em mãos para resolver definitivamente o problema do tempo: Nada.