Um Duende Debaixo da Cama (Versão Integral)
Estavam quase nus quando o filho do casal invadiu o quarto. Era a segunda vez somente naquela semana que isso acontecia. O garoto, de apenas nove anos de idade, abria a porta do quarto aos berros e, chorando muito, afirmava que tinha um bonequinho debaixo da cama que o assustava e não o deixava dormir.
Aquela situação já começava a prejudicar a vida sexual do casal. Haviam levado o menino a um psicólogo a fim de descobrirem o motivo desse estranho comportamento. A doutora afirmou-lhes que isso era normal, era tão-somente o medo provocado pela imaginação fértil do filho. Até enfatizou que era um sinal de que o garoto poderia exercer quando adulto um ofício artístico: escritor, pintor, escultor e etc.
- Já chega, Berenice, vou ter que dar umas palmadas nesse "artista"! Acabou minha paciência! - Disse o pai, pegando uma das suas chinelas.
- Não, Mário, lembre-se do que combinamos antes de termos o Leozinho... Temos que evitar a violência física, isso faz mal ao nosso filho. - Respondeu a jovem mulher, enquanto segurava a mão onde o marido portava a arma doméstica.
- Merda, Bere, isso faz muito tempo, as coisas mudaram. E esse pirraio já passou dos limites de levar umas chineladas. Ora, tenho que mostrar a minha autoridade. Daqui a alguns dias ele vai querer nos expulsar da nossa cama e nós vamos terminar dormindo na sala. É isso que você quer?
- Não seja exagerado... ele só esta com medo de dormir sozinho. E, conforme a própria psicóloga afirmou: isso é coisa de criança, vai passar com os anos.
- Ah... já estou farto da conversa daquela doutorazinha. Como ela pode saber como lidar com crianças se ela não tem filhos? Você mesmo me mostrou as mãos dela: é solteirona. Apenas uma encalhada da vida. Sejamos realistas, o melhor remédio pra garoto traquino é o corretivo da sandália!
- No meu filho você não bate, seu grosso! Eu sei o que você quer... queres é imitar a má conduta do teu pai que lhe deixava de castigo de joelhos em cima de caroços de feijão. Mas faça isso e você vai perder a sua esposa e o seu filho para sempre! - Rebateu claramente irritada, para logo depois se levantar da cama e correr em direção ao filho, o qual ainda estava parado na porta do quarto, quase em estado de choque.
Por alguns segundos, calou-se e contemplou a sua esposa e o seu único filho. Sabia que eles eram os seus maiores bens, na verdade, os únicos. Era um mero bancário, não possuia nem casa própria nem-tampouco veículo. Portanto, perdê-los seria perder a razão da sua humilde vida. Ainda sentado sobre a cama, observava-os ali, desamparados, próximos à porta do quarto. Sua esposa havia se abaixado a fim de abraçar o filho com mais facilidade. Ambos choravam desesperadamente.
Tinha de fazer algo. Não podia bater no filho, apavorava-se na hipótese de perder a sua família. Mas o que faria? Já houvera levado o garoto para um especialista diversas vezes. De fato, abusou do plano de saúde. Na semana anterior até dormiu um dia no quarto do filho a fim de prova-lo que não existia nada ali. Olhou debaixo da cama e mostrou-lhe que não havia sinal algum de bonequinho. Mas Leozinho insistiu que a criatura tinha sumido porque gostava de aparecer apenas para as crianças.
Levantou-se da cama, calçou as suas sandálias e foi ao encontro do filho e da esposa. Ao chegar lá, também abaixou-se e abraçou fortemente a ambos. Queria demonstrar a sua segurança. Queria mostrar que tinha uma solução para aquele problema. No entanto, sabia que não tinha. Angustiado, beijou-lhes e, tentando manter o auto-controle, disse:
- Acalmem-se, meus amores... Isso vai passar, garanto-lhes! Nem que eu tenha de dormir todos os dias naquele quarto, descobrirei o motivo dessas aparições. Isso caso exista motivo ou mesmo casa haja bonequinho fantasma.
- Mas, Mário, não precisa fazer esse sacrifício. Acredite nas palavras da doutora, tudo isso vai passar com o tempo. Devemos apenas sermos compreensivos com essa situação. Eu sei que é dificil você entender, porém Leozinho tem que dormir conosco por enquanto.
- Por enquanto... até quando? Um ano, dois anos, quem sabe cinco anos... Não! Definitivamente. Prefiro dormir no quarto dele por uns dias e mostra-lo que esta enganado. Sabe, Bere, é até melhor eu fazer isso, assim não brigo com você por causa dessa besteira. Sei, no íntimo do meu coração, que estou fazendo a coisa certa.
E de fato, à partir daquele dia, Mário dormiu no quarto do filho. Chegava do seu trabalho, jantava, assistia um pouco de televisão ao lado da família, dava um beijo na esposa e outro no filho e dirigia-se ao pequeno cômodo religiosamente às 11:30h da noite. À princípio não conseguia dormir facilmente, ficava pensando nas descrições da criaturinha que Leozinho dizia ver quase todas as noites. "Será que ele existe?" Indagava-se, puxando as pernas para o centro da cama. "Será que ele quer algo da minha família?" Pensava, cobrindo-se por completo, mais pelo medo do que pelo frio do inverno.
Essas preocupações foram se dissolvendo com o passar das semanas e, por conseguinte, Mário logo começou a pregar para seu filho que não existiam fantasmas nem tampouco duendes. Que houvera dormido tranquilamente lá e mentia que em nenhum momento teve medo. Contudo, no penúltimo dia que dormiria na cama do filho, convidou o dito cujo para acompanha-lo na cama a fim de dormirem juntos. Queria provar, definitivamente, que não existia nada de sobrenatural naquele local.
O garoto aceitou com um certo receio, alegou que a criatura apenas esperava um momento oportuno para voltar a aparecer e ataca-lo. A mãe dele também não gostou da proposta paterna, julgava que o menino ainda não estava preparado para voltar ao quarto. Porém, o pai insistiu e a mãe cedeu, não aguentava mais dormir sozinha, queria seu marido de volta. E intimamente torcia para que a idéia de Mário desse certo. Não aguentava mais aquele problema.
- Vamos, meu filho, você vai ver que estou com a razão. - Disse Mário, puxando o garoto pelo braço e o levando para o cômodo infantil.
- Mas, papai, o duende ainda esta debaixo da minha cama. Eu sei disso.
- Que duende, menino! Não tem nem duende, nem doente, nem Bob Esponja, nem Os Sete Anões e nem nada. Ora, acalme-se, você vai dormir comigo. Quero acabar com seu medo. - Falou o pai ligando a luz do quarto.
Deitaram-se, mas não antes de rezarem o Pai-Nosso, Mário educava o filho na religão católica, porém afirmava que quando o garoto crescesse escolheria se seguiria ou não a religião da familia. Julgava que estava fazendo a coisa certa. Então ele cobriu o filho com um lençol fino e um edredom, havia percebido que a criança tremia intensamente, sabia que não era de frio. Cobriu a si próprio e colocou a cabeça do filho sobre o seu peito a fim de acariciar-lhe a cabeça. Esperava que isso o acalmasse um pouco e o fizesse adormecer.
- Papai, ele vai aparecer. Eu sei. Ele quer falar conosco e não aguenta mais esperar. Deixa eu sair daqui, Papai, por favor. Quero ir dormir com a mamãe feito nos outros dias. Estou com medo e não vou conseguir dormir.
- Ora, Leonardo, cale-se! Já estou farto dos seus medinhos. Você é macho ou não é? Pois bem, se você sair daqui agora, eu não te darei mais nenhum dinheiro para os seus lanches no colégio. E então? É isso que você quer?
- Mas, papai...
- Papai um cacete! Cale-se, senão eu vou te dar umas chineladas!
Transcorreu-se quase uma hora até que Mário houvesse percebido que seu filho adormeceu. Contudo, quem não estava conseguindo dormir era ele. A última conversa que tinha tido com o garoto apenas reacendeu o seu pavor pela história. Lembrou-se de que alguns dias antes tinha acessado a Internet a fim de adquirir informações acerca desse assunto. Havia achado muito material, mas após ter lido uma dúzia de impressões, não conseguia acreditar em nada. Julgava que era tão-somente um tema folclórico, fantasioso.
Então por que ele sentia medo naquele momento? Nem ele sabia explicar tal sentimento. Mas estava de fato apavorado, mais do que nos primeiros dias de estadia no quarto do filho. Com o passar do tempo havia percebido que o frio aumentava gradativamente, tanto que o seu corpo e o do seu filho estavam gelados. Sabia que o inverno na sua cidade era frio mas nunca daquela maneira tão severa. Com algum esforço conseguiu retirar de debaixo dos lençóis o braço onde ficava o seu relógio de pulso, constatou que já ia dar três horas da madrugada. Havia assistido na televisão que esse era o horário mais propício para os fantasmas aparecerem aos vivos. Foi aí que as suas pernas começaram a tremer.
O relógio da sala tocou a fim de indicar o horário indesejado. E nesse momento Mário sentiu algo diferente no quarto. Uma presença, uma respiração. E não era a do seu filho, pois este não roncava. Era oriunda de debaixo da cama. À princípio não acreditou no que estava ouvindo, presumia que fosse apenas a sua imaginação. No entanto, depois ouviu passos leves debaixo da cama. Passos que percorriam toda a extensão desse móvel, algumas vezes havia ouvido os passos até fora desse local, alcançando quase as paredes do quarto.
Começou a pensar na hipótese de ligar a luz do pequeno abajour infantil, que ficava vizinho à cama. Mas até isso não conseguiu facilmente. Seu corpo parecia paralisado pelo medo. Somente depois de vários minutos de sofrimento é que conseguiu essa façanha. E, para a sua surpresa, não havia nada no quarto. Porém, sabia que a raiz dos ruídos vinha de debaixo da cama e para confirmar que não existia nenhum intruso; certamente teria de levantar-se da cama, abaixar-se e colocar a cabeça a fim de enxergar o local.
Mário levou outros vários minutos para criar coragem para isso. Levantou-se com cuidado a fim de não acordar o filho, o que menos queria eram os gritos de medo da criança, poderia levar tudo a perder. Trêmulo, colocou as sandálias, ajeitou o seu pijama e com isso procurou acalmar-se um pouco. Foi somente depois disso que abaixou-se lentamente. E finalmente viu o que não queria ver...
Uma criatura que media no máximo cinquenta centímetros de altura. Vestia uma roupa ao estilo medieval, nas cores verde e marrom. Calçava botas de cano longo e de couro e tinha sobre a sua cabeça um gorro verde que pendia para um dos ombros dele. A sua fisionomia era assustadora: possuía um nariz longo e magro, quase do tamanho dos seus braços. Tinha olhos amarelados, grandes e vivos. E orelhas pontiagudas. Carregava em uma de suas mãos um pequeno pedaço de papel enrolado com um barbante, assemelhava-se a um mapa. E na outra possuía um cachimbo ainda não acesso.
- Ora, se não é o grande e corajoso Mário...
- Quê...Quê... - Gaguejou o pai de familia, mergulhado num estado catatônico. Paralisado.
- Que foi, meu caro, a sua língua esta colada? Na minha terra temos remédio para isso, caso queira... Bom, mas eu não frequento esta casa há decadas apenas para medicar vocês, humanos. Tenho algo mais importante para te dizer... Algo que tenho para fazer há muito tempo e somente agora tive oportunidade de cumprir... - Disse a criaturinha, sorrindo, e por conseguinte, deixando surgir os seus dentes amarelados e afiados.
- Quê... Quê... - Reiterou Mário.
- Tenho que te dar um presente, aliás, não era nem para ti, era para o seu filho. Mas já que você não permitiu que eu desse a ele, dar-te-ei. Sabe, já estou farto de vim aqui todas as noites a fim de resolver logo isso. Pois bem, eis aqui um mapa do seu quintal. Lá você desenterrará um baú repleto de ouro e jóias. Ele agora pertence a vocês. Não posso te dizer o motivo dessa caridade, porém posso afirmar que é um costume antigo do nosso povo.
- Bbbbabbb... - Rugiu Mário.
- Olha, já vou indo, meu amigo. Tenho que voltar para a minha terra e informar que estou livre do meu compromisso. Apenas peço que nunca digam de quem receberam o tesouro, senão terei que voltar aqui e recuperá-lo. Façam bom uso dele e adeus. Não importunarei mais vocês. - Falou o duende, dando-lhe as costas e saindo correndo de debaixo da cama e, por conseguinte, sumindo da vista de Mário.
Fim do Conto.
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