A Última Insônia

Às vezes eu me pego sendo escalpelado pelas garras da insônia: ouço mil vozes tagarelando simultaneamente na minha cabeça, sinto palpitações na região do coração que penso ser a anunciação de um infarto e não são raras as vezes em que me imagino deitado sobre um lençol de urtigas. Certa madrugada, já enfastiado da celeuma das mil vozes, saí da cama e fiquei vagando pela casa. Sentei na privada e fiquei lendo potes de shampoo, abri e fechei a geladeira várias vezes, fiquei zapeando pelas dezenas de canais da televisão. Passou-se uma hora sem que minha agitação sofresse a menor alteração. Abri a janela da sala e fiquei contemplando as rubras nuvens que moviam-se pelo céu. "Talvez hoje faça frio", pensei. Um pensamento débil, já que era uma madrugada de verão. Um verão tão tórrido como qualquer um que eu pudesse trazer à memória. Fui até a cozinha, fustigado pelo desejo de beber um gole de café. Mau grado meu fomentar tais desejos que só me prejudicam, pois em plena atividade insone, ingerir cafeína, oras!, onde já se viu? Contentei-me com um copo de leite com um pouco de canela em pó e retornei à janela da sala. As nuvens mais carregadas haviam desaparecido, restando apenas poucos, finos e vagarosos fragmentos que eram facilmente transpassados pela luz da lua cheia. As estrelas cintilavam e, se eu fosse dotado de linguajar poético e de homérica pretensão, diria que elas estavam cintilando com alegria só pelo fato de eu ser seu único espectador. Calcei um chinelo, abri a porta e saí para apreciar o céu noturno sem as grades da janela atrapalhando. Contornei um dos carros que estavam na garagem e subi os degraus da escada que levava à varanda da casa da minha avó, puxei uma de suas cadeiras de balanço até a ponta da escada, sentei-me e deixei-me levar pela manancial de pensamentos gostosos que espocavam como flashes na minha retina. Lembranças de infância que estavam guardadas no porão mais isolado da memória vieram à tona. Almíscares de transas passaram pelas minhas narinas tão pungentes quanto o cheiro da canela misturada ao leite. A lua estava linda! Observando mais atentamente, constatei que ela não estava cheia. Sua aura fazia com que halos alaranjados, azuis, vermelhos e amarelos tingissem as parcas nuvens que iam preguiçosamente em direção ao leste. Foi quando ouvi uma voz me chamando. Olhei em direção à porta da casa da minha avó mas não havia ninguém. Olhei pra baixo, pro quintal, e, tinha um gato - basicamente preto, excetuando uma mancha branca entre as orelhas - sentado no teto do carro, olhando pra mim com atenção. Seus olhos refletiam de forma macabra a luz da lua. Emiti aquela espécie de silvo que atrai a atenção dos felinos e ele piscou o olho esquerdo. "Entra no carro", falou pra mim, "precisamos ir a um enterro". Senti uma forte palpitação antes que me meu rosto perdesse a cor. Senti um suor frio brotando na testa e nas costas. O gato repetiu as mesmas palavras, de forma pausada, um tanto entediado, arrisco dizer, porém, indubitavelmente decidido. Desci as escadas, contornei o carro, entrei em casa. O gato acompanhava meus passos com os olhos sem se mexer. Peguei a chave do carro e abri o portão e, enfiando a chave na porta, constatei que ele não estava mais sentado no teto. "Vamos, faltam poucos minutos pra amanhecer", ouvi a voz dizendo. Ele estava no banco do carona. Sentei, dei a partida, engatei a ré e saí. "Enterro de quem?", perguntei, pela primeira vez assumindo meu desvario. "Apresse-se", talhou o bichano. O Cemitério - um dos maiores por estas bandas da América do Sul - ficava distante apenas quatro quilômetros de casa e, logicamente, chegamos lá em poucos minutos. Estacionei em uma ruela perto do portão principal e então saltamos. Floriculturas abriam suas portas enquanto um cabaré que ficava em frente ao grande muro branco do Cemitério baixava as suas. O ar da manhã estava úmido e frio. Atravessamos a avenida e ultrapassamos o portão principal. Alguns cães vadios que estavam deitados em sepulturas de até dois metros de altura não pareceram notar a minha presença - e em especial a presença do gato quase-preto que caminhava ao meu lado. "Por aqui", falou secamente, entrando num corredor à direita. Ao longe, pude ver algumas pessoas caminhando, esparsas, em grupos de duas ou três abraçadas, chorando, ou então solitárias, atrás da grande maioria caminhando taciturnamente e olhando para os próprios pés. Todos pararam em frente a uma cova. Pareciam não me notar. Não que eu quisesse a atenção do morto, mas eu era um estranho. "Por que você me trouxe até aqui?", perguntei pro gato. Só que ele havia desaparecido. Uma oração - a última oração - estava sendo feita com o caixão repousado ao lado da cova. Abri espaço por entre as pessoas para ver de quem se tratava mas assim que bati os olhos no cadáver senti as minhas pernas amolecendo, como que sendo tragadas pelo solo carregado de defuntos daquele maldito cemitério: era o MEU enterro.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 23/02/2011
Reeditado em 23/02/2011
Código do texto: T2811183
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