Novecentos e noventa e nove Octilhões
Benito foi conduzido ao manicômio por um motivo banal. Só porque andava surrupiando objetos de si mesmo. É que ele sempre tinha tido a inocente mania de subtrair coisas ( sem valor, é claro ) de pessoas amigas da família.
Mas ultimamente, desejando aumentar o grau de dificuldade de seu “hobby”, já que enganar os outros era fácil, decidira passar para trás a si mesmo. Queria chegar à perfeição roubando coisas que já eram suas. Se algum dia conseguisse ludibriar a si mesmo, significava que podia enganar qualquer um. Inocente mania.
A família dele, no entanto, achou a coisa grave e o meteu no hospício.
Lá dentro, Benito conheceu alguns colegas de “hobby”, que tinham idéias, por assim dizer, mais originais. Todos ali pecavam pela criatividade excessiva.
O Gilson, por exemplo, desde pequeno desenvolvera a incrível habilidade de chutar o vento, e não errava um arremate na direção do gol imaginário.
Outro amigo que Benito fez logo que chegou a sua nova casa foi o Zéfiro, que tinha uma linda e exclusiva coleção de antenas de barata.
Mas seu melhor amigo era o Catulo, um gênio não reconhecido pela humanidade. Possuía o projeto — e o guardava somente na memória — de um carro, cujo combustível era revolucionário: nada mais nada menos que um motor movido a urina. Bastava-lhe um empresário de visão futurista que investisse na idéia e pronto, estaria milionário. Não desenharia uma única peça antes de ter o contrato devidamente assinado. Ah, ninguém o passaria para trás.
Benito se adaptou logo ao seu novo lar. E não demorou muito para que começasse a desenvolver mais ainda sua mania original. No entanto, inexplicavelmente não conseguia atingir seu objetivo de ludibriar-se a si mesmo. Persistia com afinco. Era obstinado.
Nas horas vagas, isto é, quando não estava engendrando um novo roubo contra si mesmo, Benito gastava o tempo conversando com seu melhor amigo, o Catulo, que também dava um tempo no seu ousado projeto do carro movido a xixi.
Segundo os médicos, Benito alternava raros momentos de lucidez. O problema é que nunca se sabia quando aquela mente estava ou não em parafuso. Já seu companheiro Catulo, esse ficava cada vez pior, ou seja, cada vez mais incompreendido pela humanidade. Seu projeto evoluía sempre. O motor do carro funcionaria até mesmo com urina de cavalo ou de qualquer outro animal de igual por- te.
Numa dessas conversas entre os dois incompreendidos foi que surgiu a pérola bruta que a humanidade inteira contemplaria durante séculos, ou riria.
Só não se sabe é se, durante o famigerado diálogo, Benito estava num de seus momentos de excentricidade ou se, como diriam os psiquiatras em sua frieza científica, estava num daqueles frequentes acessos de lucidez.
Não importa. O fato é que conversaram calma e longamente no jardim do manicômio. Fitando um ponto no espaço, Benito começou estranhamente a raciocinar acerca da natureza das coisas. E dissesimplesmente:
— Sabe, Catulo? eu estava pensando.
— No que? retrucou Catulo, só para puxar assunto.
— Lembra quando estudamos as partículas da matéria, o átomo, o elétron, o nêutron e outras mais, sei lá?
— Sim.
— Pois é. Estive pensando e cheguei à conclusão de que a matéria não existe. Tá na cara. Só não sei é como ninguém até hoje tinha percebido isso.
— Ah, para com isso, Benito. Não é porque aqueles malucos lá de fora nos puseram aqui que você precisa ficar agindo feito louco. Imagine! A matéria não existe. É piada.
— Mas é tão óbvio. Quer ver? Vou-te provar que é verdade.
— Então prova. Quero ver só. Que besteira!
— Vamos lá. É pura matemática. Imagine a menor coisa que você conhece.
— O elétron. Pode ser?
— Muito bem, o elétron, uma partícula tão minúscula que ninguém jamais a viu nem verá. Tão pequeno que sua existência só pôde ser comprovada matematicamente. Agora imagine esse elétron dividido matematicamente por, digamos, 999 octilhões de vezes. Imaginou?
— Octilhões?! Mas o que raios é isso? Nunca ouvi falar.
— Um octilhão é igual a mil setilhões.
— Piorou! E o que é esse tal setilhão?
— Um setilhão é igual a mil sextilhões. Um sextilhão é igual a mil quintilhões. Um quintilhão é o mesmo que mil quatrilhões. Um quatrilhão é igual a mil trilhões. Já um trilhão vale mil bilhões. E um bilhão, como você sabe, equivale a mil milhões, etc. Agora imagine o elétron dividido por 999 octilhões de vezes.
— Imaginei. E daí?
— Perto dessa nova partícula, o nosso elétron inicial seria gigantesco, correto?
— Correto. Pode continuar. Até agora você não provou nada.
— Calma, calma. Só para facilitar, vamos chamar essa nova partícula de quase-nada-tron. Pois bem. Agora vamos dividir um quase-nada-tron também por 999 octilhões de vezes. Teríamos uma coisa tão diminuta que nem vamos perder tempo em imaginar.
— Nem dá para imaginar mesmo. — considerou Catulo, num longo bocejo — Mas até agora...
— Certo. Vamos, só para facilitar o raciocínio, chamar essa nova partícula de nadinha-tron. Pense então o que daria se dividíssemos um nadinha-tron por 999 octilhões de vezes.
Catulo coçou a cabeça. Aquela história que em princípio lhe parecera boba começava a ficar interessante. Afinal onde iriam parar tantas e tantas divisões das partículas?
— Agora imagine só: — prosseguiu Benito — se continuarmos dividindo indefinidamente as partículas, acabaremos chegando ao nada absoluto. Total.
— Ao nada total? Mas o que é o nada?
— Ora, o nada é simplesmente a ausência de algo. Sabemos que matematicamente é possível dividir até ao infinito. Logo, matematicamente, está provado que a matéria não existe.
— Mas como, se está provado, também matematicamente, que o elétron existe? Então a matemática só vale para um lado? Isto é absurdo.
— Que é absurdo eu sei. Mas é assim mesmo. Está provado pela divisão infinita das partículas que em algum ponto da operação chegaremos à partícula, que nem pode ser chamada de partícula, já que não tem sentido no mundo da matéria. Chamaremos de nada o resultado de nossa divisão, vez que não possuímos outra palavra. Sabemos que tudo que “existe” é formado por essa pseudopartícula, cujo único nome possível em nosso mundo é nada. Ora, por dedução
lógica, tudo que é formado por “nadas” obviamente também é nada. E se nada é simplesmente aquilo que não existe, então evidentemente tudo não existe. Tudo se confunde com nada, já que são a mesma coisa. Como entendemos esse “tudo” como a matéria em si, é fácil se chegar à conclusão de que se trata de uma farsa. A matéria não existe. Isso é fato.
— Suponhamos que você esteja certo, que a matéria não existe mesmo. Mas então o que é isso que nós vemos e tocamos diariamente? Como se explica isso?
— Ora, na verdade não vemos nada simplesmente porque nossos olhos também não existem, já que são feitos pela mesma matéria que não existe. E na realidade não tocamos em nada, pois nossos dedos, mãos, todo o restante de nosso corpo também não existe, vez que é composto de matéria. Veja só: as únicas “evidências” que temos de que a matéria “existe” são-nos dadas pela própria matéria. Ou seja: não dá mesmo para confiar muito nessas “evidências.” Seria como se perguntássemos a um mentiroso se ele está fa-
lando a verdade. Certamente ele mentiria dizendo não ser mentiroso. Ingenuidade seria dar-lhe crédito.
— Porém, você tem que concordar que algo existe.
— Claro. Alguma coisa existe. Agora isso é pura tese. Não tem comprovação matemática.
— E o que é que existe afinal, na sua opinião?
— Só existe a consciência, o pensamento, a idéia.
— Explica isso melhor.
— Veja bem. A consciência foi sujeitada ao mundo da matéria, ou seja, foi iludida, pois a matéria não existe de fato. Mas, sendo a ilusão perfeita, a consciência interage com a matéria como se esta fosse real, e a própria consciência não está consciente de que ela é a única a existir de fato. E o que é pior: às vezes, e na maioria das vezes, a consciência se subjuga de tal forma à presença
da matéria que chega a supor que ela ( a matéria ) é que é a única a existir de fato. Ora, veja você: a morte, por exemplo, nada mais é do que o retorno da consciência à realidade.
— E muitos questionam se existe vida após a morte.
— Pois é. Quando deveríamos nos questionar é se existe vida “antes” da morte
— Que coisa mais complicada, Benito.
— Parece complicado, mas na verdade é simples.
— E qual a razão de tudo isso? Afinal deve haver um objetivo nessa complicação toda.
— Eu penso que deve haver uma Consciência superior que a tudo rege e a tudo programa. Nós seríamos as consciências em evolução. Evolução essa que tem, por alguma razão, que passar por essa experiência de vida, ou seja, a ilusão da matéria.
— Seria uma espécie de teste?
— Talvez. E na maioria das vezes não passamos no teste, pois supervalorizamos uma coisa que não existe de fato, a matéria. Deveríamos era aprimorar cada vez mais a consciência. Ainda somos por demais primitivos, embora não saibamos disso.
— Entendo. Mas e essa Consciência superior de que você falou há pouco, o que seria?
— É o que as religiões chamam de Deus. E que, primitivos que somos, não sabemos definir direito. Talvez não nos tenha sido concedido entender e tampouco definir.
— Resumindo então, você acha que não devemos dar nenhuma importância à matéria. Que, por exemplo, quando alguém mata alguém não comete erro algum, já que aquele corpo na verdade não existe?
— Não. De forma alguma. A matéria tem sua importância. Tem seu objetivo. Se não tivesse, a Consciência superior não a teria imposto a nós. Uma vez que vivemos incutidos de sua existência, temos que agir de acordo com suas leis. Matar alguém, por exemplo, é desrespeitar essas leis. Temos que lembrar que naquele corpo que matamos existe uma consciência que também está ali cumprindo sua etapa, que foi definida pela Consciência superior tal qual nós
mesmos, embora não saibamos ao certo o que é. E além do mais...
Enquanto isso, na sala da diretoria do manicômio, o diretor recebia a visita anual do inspetor do Ministério da Saúde. E assim conversavam:
— Veja, Sr. inspetor, sabe qual é a pior coisa nos loucos?
— Não, não sei não. Qual seria a pior coisa nos loucos?
— A pior coisa nos loucos é precisamente o fato de eles pensarem que não são loucos.
— Entendo. Agindo assim, eles falam e fazem os maiores disparates achando tudo muito natural.
— Sabe que há deles inteligentíssimos? É pena serem desvairados.
— É pena mesmo. Quantas boas idéias se perdem ao vento por esses jardins e corredores, que são o mundo deles?
Depois de alguns dias desde aquela conversa no jardim, os dois loucos, ou melhor, incompreendidos, novamente se encontraram, desta vez no refeitório. E assim falaram:
— Sabe de uma coisa, Benito? decidi te contar um segredo. Você é meu amigo e merece saber.
— Saber o quê? — cochichou Benito.
— É que na verdade eu sou Deus! — sussurrou Catulo.
— Ah, bobão! Pensa que eu já não sabia?!