Um conto de ócio e fome

Olhei para o lado e vi meu reflexo na televisão desligada. Voltei os olhos para o livro, mas no mesmo instante tornei a virar para a TV a fim de confirmar uma impressão que tive.

Eu parecia mesmo abatido. Fui até o espelho do banheiro; Amparados por gordas bolsas escuras, meus olhos se mantinham abertos até a metade. Vermelhos e cansados, pude ver pequenas veias rubras dentro deles.

A barba estava bem feita. No dia anterior a havia consertado nas bordas para disfarçar o relaxo. Estava comprida, mas tinha um formato razoável.

Lavei o rosto e, ao olhar para o centro da pia, notei a crosta amarelada gelatinosa que vinha se acumulando em torno do ralo. Perguntei-me como estaria o resto da casa.

Girei a roda direita da minha cadeira mantendo a esquerda muito firme. Dei meia-volta e saí do banheiro para dar uma olhada em como estava o restante da casa.

Moro numa quitinete, fazer a ronda é muito fácil. Talvez nem precisasse da cadeira de rodas; poderia percorrer toda a casa rastejando sem grande dificuldade.

Parei ao lado da mesa. O pote com um resto de cereal prendeu minha atenção, me fez lembrar que não comia há muito tempo. Não é exagero dizer que havia esquecido da fome.

Pus o pote no colo e girei até a geladeira. Desrosqueei a tampa e joguei um pouco de leite lá dentro. Fui até a pia, enfiei a mão no amontoado de louça suja e resgatei uma colher mais ou menos limpa pela água acumulada em um prato fundo.

Girei até o meio da casa, entre a mesa e a cama, o leite balançando dentro do pote. Dei uma colherada cheia de cereal com o máximo de leite que consegui juntar, e foi como se minha fome tivesse sido reativada, despertada de seu estado latente.

Eu precisava de comida. Engoli mais um pouco do cereal e fui atrás de comida de verdade.

Na carteira eu tinha cinco reais, muito pouco para encomendar qualquer coisa. Bebi água. Acho que o peso no estômago fez a fome aumentar. Fui ao banheiro, voltei, girei no meu eixo, olhei em volta procurando uma solução.

Então lembrei-me de que meu propósito ao sair do banheiro há alguns minutos era verificar o estado da casa, pensamento despertado pela sujeira acumulada em torno do ralo da pia do banheiro. Ignorei. Eu tinha fome.

Abri novamente a geladeira, como se abrindo e fechando a geladeira surgisse comida lá dentro. Abri, então, a carteira, como se surgisse dinheiro. Nada disso aconteceu, é claro, mas na segunda vez que abri a certeira, notei dentro dela um papel que soube na hora do que se tratava.

Era o telefone de uma mulher que conheci em um baile de formatura. Ela é uma dessas moças que fazem a recepção dos convidados. Na entrada da festa estavam ela e mais uma desejando boa noite e indicando as mesas às famílias e amigos dos formandos.

Lá pelas tantas, girei até perto delas, as únicas mulheres da festa que não fugiriam de mim com uma desculpa qualquer, já que eram obrigadas a ficar paradas de pé ao lado da porta. Ainda assim, a outra lembrou que precisava verificar o banheiro feminino e saiu dali.

Conversamos por um tempo; seu nome é Joana. Ela me contou que é universitária e faz recepções de formatura para ajudar no orçamento, e que até gostava do trabalho porque é fácil, ainda que fosse chato ter que se virar com bêbados em alguns momentos.

Voltei para a minha mesa e me despedi dos amigos. Na saída perguntei a ela se ela faria o favor de chamar um táxi para mim. Ela foi gentil e fez como eu pedi. Agradeci e pedi seu telefone; ela passou. Demos boa noite e vim para casa.

Eu amo o ócio. Não me importo de forma alguma com não ter o que fazer. Às vezes são altas horas da madrugada, já estou morrendo de sono e isso não quer dizer absolutamente nada, pois não preciso me preocupar com acordar cedo na manhã seguinte; então penso: essa é a vida que eu pedi a deus.

Peguei o cartão do taxista no qual anotei o telefone da Joana e girei até a cama para procurar por meu celular. Enquanto isso eu imaginei que tipo de universitária ela seria, já que aquele vestido azul de recepcionista anula a personalidade de qualquer mulher. Um homem dentro dele seria de muita personalidade, entretanto.

Talvez ela fosse intelectual, comportada. Roqueira, ou bicho-grilo. Ou poderia ser nada, uma moça normal.

Ela atendeu e demorou a se lembrar de mim; fazia quase um mês que conversamos na formatura. Ela se desculpou, disse que foram muitos bailes naquele fim de ano, mas que já se lembrava de quem eu era.

Fui direto ao assunto. Perguntei a ela se estava interessada em prestar-me um serviço por uma quantia modesta que não poderia ser paga à vista, já que ela fazia trabalhos por fora para completar o orçamento. Ela riu.

Perguntou do que se tratava, e eu expliquei que precisava de alguém para vir até minha casa cozinhar para mim, que eu tinha algumas coisas ainda cruas na cozinha que poderiam virar comida se passassem pelas mãos de alguém que soubesse cozinhar.

Ela ficou muito sem graça, pediu desculpas (me pareceu com pena), e disse que como era Natal, talvez ela não pudesse fazer o que eu estava pedindo, já que estava reunida com a família naquela noite.

Disse a ela que tudo bem e tentei tranqüilizá-la (ela pareceu realmente constrangida). Fez muitas perguntas, acho que ficou curiosa sobre minha família e coisas assim. Assegurei que estava tudo bem, que eu só estava com um pouco de fome (menti nessa parte, eu estava com muita fome!), e que ela poderia vir mais tarde, ou até outro dia se pudesse.

Dei a ela meu endereço, desliguei o telefone e comi todo o cereal do pote, que estava murcho e encharcado, do jeito que eu mais gosto.