Caía a maior chuva que já se vira até então. Os raios rasgavam o céu, iluminando a noite. E os trovões sacudiam o ar, fazendo tremer as vidraças das janelas distraidamente abertas. E a água era abundante, não parava de descer do céu. Parecia até que o mundo ia acabar no meio da tempestade.
Epaminondas escapara por pouco do temporal; já estava em casa e chegara meia hora antes de começar. Já tomara a sua costumeira sopa, sempre com pedaços de legumes e queijo ralado. De sobremesa, comeu uma fatia de melão e meia maçã que ficara por ali na geladeira. Agora preparava, para antes de ir deitar, um chá e, enquanto esperava a água ferver, lia um pouco sentado em sua poltrona.
Ouviu baterem à porta, umas pancadas firmes e decididas. Imaginou quem poderia ser que saísse à rua num temporal desse. Devia ser algo urgente. Não sentiu medo algum, pois a vizinhança era muito tranqüila e, durante o longo tempo que morava ali, nunca havia ocorrido nada de tão estranho ou violento. Além do mais, era conhecido por todos da vila inteira e era muito querido e respeitado.
Em todo o caso, batiam à porta apressadamente e foi abrir. Era um sujeito alto e esguio, um tanto entrado em anos, mas de porte elegante. Trajava roupas escuras, sobre as quais envergava um vistoso sobretudo. Trazia também um elegante chapéu, o qual tirou assim que viu abrir-lhe a porta.
— Boa Noite! O senhor me perdoe o atrevimento, mas o temporal está muito forte. E vi que a luz de sua sala estava acesa. Peço que me deixe pelo menos ficar aqui, onde é coberto, se não for muito incomodo.
— Não senhor, é melhor que entre, com o vento que faz o senhor vai se molhar do mesmo jeito. Por favor, fique à vontade. Aguarde confortavelmente aqui dentro, creio que o temporal não demora a cessar.
— Agradeço muito e rogo que não se preocupe. Vejo que é uma pessoa de bem e eu, como também o sou, não vou lhe fazer mal algum.
— Isso nem passou por minha cabeça. Vejo que é pessoa de bem. No mais, não devemos negar hospitalidade e socorro a ninguém, mesmo nestes tempos difíceis.
O visitante tirou o sobretudo e pendurou ao lado da porta, junto com o chapéu. Epaminondas fez com se sentasse à mesa ali na sala de jantar, que na verdade nada mais era que uma separação sem divisória da própria sala de estar. O visitante reiterou sua gratidão, cordialmente, garantindo que se demoraria o tempo que fosse necessário para o temporal amenizar. Era um homem já vivido, com os cabelos relativamente compridos à altura do ombro, o rosto já marcado por algumas rugas, mas um rosto sereno, como o olhar atento e penetrante que conferia aos seus olhos azuis um ar de respeito e consideração.
O senhor aceita um chá, não? Já estou fazendo para mim e vou por para o senhor também uma xícara. Tenho algumas torradas que ficam uma delícia com manteiga ou com geléia, o que preferir.
— Aceito sim, se não for, é claro, nenhum incômodo para o senhor.
De maneira alguma.
Epaminondas dirigiu-se à cozinha e voltou com uma bandeja, que depositou sobre a mesa e serviu o visitante. Trouxe também as torradas, a manteiga e a geléia, além de um pedaço de bolo. O visitante comeu tudo com parcimônia e aceitou outra xícara de chá. O temporal ainda dava ares de ter mais um pouco de fôlego.
— O senhor tem negócios aqui na vila? Desculpe-me, conheço todo mundo por aqui e nunca o vi. Ou o senhor é um novo morador ou veio visitar alguém.
— Na realidade vim visitar umas pessoas com quem tinha negócios por resolver. Ao sair, rumo à estação de trem, o temporal me pegou a meio caminho, então resolvi parar aqui. Pelo que agradeço mais uma vez.
— Eu nunca vi um temporal assim. Chega a ser assustador. Espero que não cause muitos danos, embora haja umas casas construídas em lugar não muito seguro, que não escapam de uma tragédia sempre que chove assim. Tenho pena das pessoas que precisam se sujeitar a morar dessa maneira.
— Não precisa mais se preocupar com essas pessoas. Elas já não estão mais nesse mundo. E algumas outras também, de outras ruas.
— O senhor viu alguma coisa? Algum desabamento? Que quer dizer?
— Não. Apesar da violência do temporal, nenhuma casa inundou ou desabou, mas as pessoas a que me refiro cumpriram o seu tempo, por assim se dizer.
— Como sabe tudo isso?
— Eu vim buscá-las esta noite...
— Buscá-las?
Epaminondas empalideceu. Sentiu-se atravessado por um frio passageiro, como se a pergunta traísse um pressentimento. O visitante disse ter vindo buscar as vidas daquelas pessoas. O que significaria isto? Ele não tinha assim ares de matador, coisa que o valha. Sentiu adejar do profundo de si uma pergunta e temeu que lhe saísse imprevistamente.
— O senhor é a M...? Não ousou terminar a pergunta. Esta se lhe engasgou pelas entranhas.
O visitante fixou os olhos em Epaminondas e seu olhar tornou-se mais profundo e penetrante.
— Interessante o medo que vocês tem de pronunciar o meu nome.
— Quer dizer que o senhor é mesmo ... ?
— Sim.
— Mas como? Quer dizer que se apresenta desta forma. Quero dizer, o senhor, aliás, não sei se devia dizer senhora, tem a forma humana. Pelo menos é o que me parece.
— Eu posso me apresentar sob as mais variadas formas. Esta, que uso agora, é de minha preferência para alguns tipos deste meu trabalho. Quer dizer, dependendo de quem e quando vou levar. Uso por vezes esta forma, porque gosto das tempestades. E, além disso, gosto de passear pelo seu mundo, olhando vocês mais de perto.
— Quer dizer que quando vem já sabe quem vai levar? Sabe a hora de cada um? Dizem que não vem na hora errada e que todo mundo tem a sua hora certa.
— Todo dia pessoas morrem. Muitas. E nascem outras tantas também. A natureza sempre acha como repor as suas perdas, por assim dizer. Mas eu nunca sei a hora de ninguém. Se me perguntar a sua, por exemplo, eu não sei. Pelo menos não sei agora.
— E como faz para realizar o seu trabalho, então?
O visitante colocou em cima da mesa um livro grande, com aparência de antigo e muito usado, mas conservado ainda. Era um livro de capa preta com uns detalhes gravados em ouro. Epaminondas esticou levemente o pescoço, como que para ver o que trazia escrito. O visitante abriu o livro ao acaso e podia se ver umas páginas em branco. Disse que abrira no dia de hoje. Com um toque de seus dedos, apareceram linhas que iam se sucedendo, escrevendo por si sós o que pareciam nomes e alguns detalhes sobre os nomes que apareciam.
Epaminondas teve a intuição de uma pergunta perigosa.
— O senhor por acaso não veio me buscar?
— Não vi o seu nome no livro.
— Mas se tivesse visto como saberia que era eu?
— Todos trazem a morte nos olhos.
— Sabe, eu pensei, quando soube quem era o senhor, que esta era a minha hora. Eu já vivi bastante. Depois de ter perdido minha esposa, há quase vinte anos, consegui, com uma ajuda aqui e ali, criar meus quatro filhos. Dois rapazes e duas moças hoje. Já estão encaminhados na vida. O mais velho é médico, depois dele tem a irmã que é advogada e trabalha numa grande firma. Tem o outro filho, estuda ainda, está no fim dos estudos. Faz engenharia. Depois, por último, a caçula. É artista. Faz pintura e escultura. Viaja muito, para os mais diversos lugares e está sempre trabalhando. São pessoas muito boas, não deixam de me visitar sempre e, quando não podem, me telefonam para saber se está tudo bem. Quando tenho férias, passo sempre um pouco de tempo na casa de cada um, a pedido deles. Eu pensei que o senhor tinha vindo me levar porque minha saúde não anda lá essas coisas. Tenho feito um tratamento médico, com acompanhamento quase quinzenal. O médico diz que está tudo sob controle e que eu vou viver muito ainda.
— Nisso eu acho que ele tem razão. Mas se fosse o caso de ser a sua hora, ia ficar desapontado, triste, com medo?
— Não. Iria satisfeito. Porque acho que já fiz tudo o que tinha que fazer. Só não queria ir antes de minhas crianças estarem bem, mas agora isso não me preocupa. Todo mundo tem a sua hora e eu, como todo mundo, tenho que ter a minha.
A chuva tinha parado já há algum tempo. O visitante levantou-se, pegou suas coisas e despediu-se de Epaminondas, que lhe foi abrir a porta. Agradeceu mais uma vez sua hospitalidade e o despojamento com que recebera um estranho em sua casa. Epaminondas fechou a porta e foi se deitar.
O visitante já estava a uma curta distância da casa. Tinha andado por aquelas ruas todas, fazendo o seu trabalho, que naquela noite tinha sido um tanto árduo. Lembrou das pessoas que tinha levado. Uma senhora de idade que tinha muitos gatos e criava a neta de dezesseis anos. Esta, que ficou sozinha, vai ter que morar em outra cidade com os tios. Tinha levado também o dono da mercearia, que tinha se instalado ali há quarenta anos. Comerciante próspero, mas muito generoso. Ajudava mais de dez famílias pobres do bairro. E também tinha levado tantos outros da mesma estirpe, gente boa que faz o bem.
E pensava nos que ficaram. O dono da fábrica de sapatos, avarento, cheio de maldade. Tratava mal seus empregados, despedia qualquer um por qualquer motivo. Ficava também o funcionário do cartório, casado com uma boa moça, mas que isto não era motivo para ele se furtar a andar com outras moças e inclusive freqüentar o meretrício que ficava fora da cidade, isto toda sexta-feira, dando desculpa que tinha que trabalhar até mais tarde. E ficava também a dona de uma pequena padaria, uma mulher orgulhosa e arrogante, que mantinha em suas amizades somente os que tinham algumas posses, chamando quem não as tinha de gentinha. Além disso, era mexeriqueira. Deitava a falar mal de todo mundo, para ela ninguém prestava.
Que triste ofício. Não que achasse que uns mereçam ser levados desta para melhor e outros não. De qualquer modo, não dava para entender, pelas contas que sempre fazia, que gente boa morre logo e gente ruim fica mais tempo infestando o mundo. Era melhor separar somente entre os que vão e os que ficam, cada qual na sua devida hora.
Mesmo assim, já mais distante da casa, tirou o seu livro e abriu na página do agora. Com um lance dos seus dedos a escrita apareceu, a lista de nomes que ele já tinha lido.
Encostou o dedo em “Epaminondas” e moveu o nome para uma página bem perto do fim do livro.
Já era noite alta. Deu uma última olhada no casario que deixara para trás. Esboçou um sorriso enigmático e desapareceu na sombra da noite.
Epaminondas escapara por pouco do temporal; já estava em casa e chegara meia hora antes de começar. Já tomara a sua costumeira sopa, sempre com pedaços de legumes e queijo ralado. De sobremesa, comeu uma fatia de melão e meia maçã que ficara por ali na geladeira. Agora preparava, para antes de ir deitar, um chá e, enquanto esperava a água ferver, lia um pouco sentado em sua poltrona.
Ouviu baterem à porta, umas pancadas firmes e decididas. Imaginou quem poderia ser que saísse à rua num temporal desse. Devia ser algo urgente. Não sentiu medo algum, pois a vizinhança era muito tranqüila e, durante o longo tempo que morava ali, nunca havia ocorrido nada de tão estranho ou violento. Além do mais, era conhecido por todos da vila inteira e era muito querido e respeitado.
Em todo o caso, batiam à porta apressadamente e foi abrir. Era um sujeito alto e esguio, um tanto entrado em anos, mas de porte elegante. Trajava roupas escuras, sobre as quais envergava um vistoso sobretudo. Trazia também um elegante chapéu, o qual tirou assim que viu abrir-lhe a porta.
— Boa Noite! O senhor me perdoe o atrevimento, mas o temporal está muito forte. E vi que a luz de sua sala estava acesa. Peço que me deixe pelo menos ficar aqui, onde é coberto, se não for muito incomodo.
— Não senhor, é melhor que entre, com o vento que faz o senhor vai se molhar do mesmo jeito. Por favor, fique à vontade. Aguarde confortavelmente aqui dentro, creio que o temporal não demora a cessar.
— Agradeço muito e rogo que não se preocupe. Vejo que é uma pessoa de bem e eu, como também o sou, não vou lhe fazer mal algum.
— Isso nem passou por minha cabeça. Vejo que é pessoa de bem. No mais, não devemos negar hospitalidade e socorro a ninguém, mesmo nestes tempos difíceis.
O visitante tirou o sobretudo e pendurou ao lado da porta, junto com o chapéu. Epaminondas fez com se sentasse à mesa ali na sala de jantar, que na verdade nada mais era que uma separação sem divisória da própria sala de estar. O visitante reiterou sua gratidão, cordialmente, garantindo que se demoraria o tempo que fosse necessário para o temporal amenizar. Era um homem já vivido, com os cabelos relativamente compridos à altura do ombro, o rosto já marcado por algumas rugas, mas um rosto sereno, como o olhar atento e penetrante que conferia aos seus olhos azuis um ar de respeito e consideração.
O senhor aceita um chá, não? Já estou fazendo para mim e vou por para o senhor também uma xícara. Tenho algumas torradas que ficam uma delícia com manteiga ou com geléia, o que preferir.
— Aceito sim, se não for, é claro, nenhum incômodo para o senhor.
De maneira alguma.
Epaminondas dirigiu-se à cozinha e voltou com uma bandeja, que depositou sobre a mesa e serviu o visitante. Trouxe também as torradas, a manteiga e a geléia, além de um pedaço de bolo. O visitante comeu tudo com parcimônia e aceitou outra xícara de chá. O temporal ainda dava ares de ter mais um pouco de fôlego.
— O senhor tem negócios aqui na vila? Desculpe-me, conheço todo mundo por aqui e nunca o vi. Ou o senhor é um novo morador ou veio visitar alguém.
— Na realidade vim visitar umas pessoas com quem tinha negócios por resolver. Ao sair, rumo à estação de trem, o temporal me pegou a meio caminho, então resolvi parar aqui. Pelo que agradeço mais uma vez.
— Eu nunca vi um temporal assim. Chega a ser assustador. Espero que não cause muitos danos, embora haja umas casas construídas em lugar não muito seguro, que não escapam de uma tragédia sempre que chove assim. Tenho pena das pessoas que precisam se sujeitar a morar dessa maneira.
— Não precisa mais se preocupar com essas pessoas. Elas já não estão mais nesse mundo. E algumas outras também, de outras ruas.
— O senhor viu alguma coisa? Algum desabamento? Que quer dizer?
— Não. Apesar da violência do temporal, nenhuma casa inundou ou desabou, mas as pessoas a que me refiro cumpriram o seu tempo, por assim se dizer.
— Como sabe tudo isso?
— Eu vim buscá-las esta noite...
— Buscá-las?
Epaminondas empalideceu. Sentiu-se atravessado por um frio passageiro, como se a pergunta traísse um pressentimento. O visitante disse ter vindo buscar as vidas daquelas pessoas. O que significaria isto? Ele não tinha assim ares de matador, coisa que o valha. Sentiu adejar do profundo de si uma pergunta e temeu que lhe saísse imprevistamente.
— O senhor é a M...? Não ousou terminar a pergunta. Esta se lhe engasgou pelas entranhas.
O visitante fixou os olhos em Epaminondas e seu olhar tornou-se mais profundo e penetrante.
— Interessante o medo que vocês tem de pronunciar o meu nome.
— Quer dizer que o senhor é mesmo ... ?
— Sim.
— Mas como? Quer dizer que se apresenta desta forma. Quero dizer, o senhor, aliás, não sei se devia dizer senhora, tem a forma humana. Pelo menos é o que me parece.
— Eu posso me apresentar sob as mais variadas formas. Esta, que uso agora, é de minha preferência para alguns tipos deste meu trabalho. Quer dizer, dependendo de quem e quando vou levar. Uso por vezes esta forma, porque gosto das tempestades. E, além disso, gosto de passear pelo seu mundo, olhando vocês mais de perto.
— Quer dizer que quando vem já sabe quem vai levar? Sabe a hora de cada um? Dizem que não vem na hora errada e que todo mundo tem a sua hora certa.
— Todo dia pessoas morrem. Muitas. E nascem outras tantas também. A natureza sempre acha como repor as suas perdas, por assim dizer. Mas eu nunca sei a hora de ninguém. Se me perguntar a sua, por exemplo, eu não sei. Pelo menos não sei agora.
— E como faz para realizar o seu trabalho, então?
O visitante colocou em cima da mesa um livro grande, com aparência de antigo e muito usado, mas conservado ainda. Era um livro de capa preta com uns detalhes gravados em ouro. Epaminondas esticou levemente o pescoço, como que para ver o que trazia escrito. O visitante abriu o livro ao acaso e podia se ver umas páginas em branco. Disse que abrira no dia de hoje. Com um toque de seus dedos, apareceram linhas que iam se sucedendo, escrevendo por si sós o que pareciam nomes e alguns detalhes sobre os nomes que apareciam.
Epaminondas teve a intuição de uma pergunta perigosa.
— O senhor por acaso não veio me buscar?
— Não vi o seu nome no livro.
— Mas se tivesse visto como saberia que era eu?
— Todos trazem a morte nos olhos.
— Sabe, eu pensei, quando soube quem era o senhor, que esta era a minha hora. Eu já vivi bastante. Depois de ter perdido minha esposa, há quase vinte anos, consegui, com uma ajuda aqui e ali, criar meus quatro filhos. Dois rapazes e duas moças hoje. Já estão encaminhados na vida. O mais velho é médico, depois dele tem a irmã que é advogada e trabalha numa grande firma. Tem o outro filho, estuda ainda, está no fim dos estudos. Faz engenharia. Depois, por último, a caçula. É artista. Faz pintura e escultura. Viaja muito, para os mais diversos lugares e está sempre trabalhando. São pessoas muito boas, não deixam de me visitar sempre e, quando não podem, me telefonam para saber se está tudo bem. Quando tenho férias, passo sempre um pouco de tempo na casa de cada um, a pedido deles. Eu pensei que o senhor tinha vindo me levar porque minha saúde não anda lá essas coisas. Tenho feito um tratamento médico, com acompanhamento quase quinzenal. O médico diz que está tudo sob controle e que eu vou viver muito ainda.
— Nisso eu acho que ele tem razão. Mas se fosse o caso de ser a sua hora, ia ficar desapontado, triste, com medo?
— Não. Iria satisfeito. Porque acho que já fiz tudo o que tinha que fazer. Só não queria ir antes de minhas crianças estarem bem, mas agora isso não me preocupa. Todo mundo tem a sua hora e eu, como todo mundo, tenho que ter a minha.
A chuva tinha parado já há algum tempo. O visitante levantou-se, pegou suas coisas e despediu-se de Epaminondas, que lhe foi abrir a porta. Agradeceu mais uma vez sua hospitalidade e o despojamento com que recebera um estranho em sua casa. Epaminondas fechou a porta e foi se deitar.
O visitante já estava a uma curta distância da casa. Tinha andado por aquelas ruas todas, fazendo o seu trabalho, que naquela noite tinha sido um tanto árduo. Lembrou das pessoas que tinha levado. Uma senhora de idade que tinha muitos gatos e criava a neta de dezesseis anos. Esta, que ficou sozinha, vai ter que morar em outra cidade com os tios. Tinha levado também o dono da mercearia, que tinha se instalado ali há quarenta anos. Comerciante próspero, mas muito generoso. Ajudava mais de dez famílias pobres do bairro. E também tinha levado tantos outros da mesma estirpe, gente boa que faz o bem.
E pensava nos que ficaram. O dono da fábrica de sapatos, avarento, cheio de maldade. Tratava mal seus empregados, despedia qualquer um por qualquer motivo. Ficava também o funcionário do cartório, casado com uma boa moça, mas que isto não era motivo para ele se furtar a andar com outras moças e inclusive freqüentar o meretrício que ficava fora da cidade, isto toda sexta-feira, dando desculpa que tinha que trabalhar até mais tarde. E ficava também a dona de uma pequena padaria, uma mulher orgulhosa e arrogante, que mantinha em suas amizades somente os que tinham algumas posses, chamando quem não as tinha de gentinha. Além disso, era mexeriqueira. Deitava a falar mal de todo mundo, para ela ninguém prestava.
Que triste ofício. Não que achasse que uns mereçam ser levados desta para melhor e outros não. De qualquer modo, não dava para entender, pelas contas que sempre fazia, que gente boa morre logo e gente ruim fica mais tempo infestando o mundo. Era melhor separar somente entre os que vão e os que ficam, cada qual na sua devida hora.
Mesmo assim, já mais distante da casa, tirou o seu livro e abriu na página do agora. Com um lance dos seus dedos a escrita apareceu, a lista de nomes que ele já tinha lido.
Encostou o dedo em “Epaminondas” e moveu o nome para uma página bem perto do fim do livro.
Já era noite alta. Deu uma última olhada no casario que deixara para trás. Esboçou um sorriso enigmático e desapareceu na sombra da noite.