SUICIDA BURGUÊS
SUICIDA BURGUÊS
Vã ilusão de DOIDIVÂNIO, de que um filho seria sua salvação. E existia o risco de morrer a qualquer instante. Quando pensou na morte, estremeceu.
Olhou pela janela do seu apartamento e viu que nunca havia reparado que cada uma daquelas pessoas lá embaixo era um indivíduo tão importante, tecnicamente e teoricamente. Toda pessoa é, acima de tudo, egoísta, sentenciou.
Estava cansado, precisava dormir. Era mesmo melhor pensar que Deus o aliviaria dos seus dissabores; e, no dia seguinte...
A idéia da morte não era tão perturbadora; apesar de questionar-se se era justo continuar a viver na frivolidade. Mas então é isso! Para que alguém vai se preocupar com coisas tão profundas se vai mesmo morrer?
Era insignificante pensar na morte. A charada era adormecer. Amanhã, afinal, seria um novo dia que, com certeza, traria algum alento.
Não queria a morte, por morte, apenas não fazia diferença. E nem sempre Doidivânio foi tão confuso como agora, mais de 53 anos no lombo. Na sua infância, desfrutou de momentos de magia e certezas. Lembra bem das brigas do pai com sua mãe... das revistas pornográficas... do chuveiro do banheiro aberto enquanto treinava solitariamente para tornar-se um homem. Cenas como essas lhe vinham involuntariamente e cada vez mais à sua revelia.
Enquanto “ELA”, era empregada doméstica, com seu vestidinho quadriculado, esperando a novela, na qual finalmente o personagem principal iria descobrir o quão traído era, como “ELA” própria, queria viver.
Olhando pela janela do apartamento, via as pessoas transitarem para lá e para cá; aquele cenário lhe pareceu tão grotesco. Observou: “Mas quanta gente feia?” Comprazia-se nesse pensar.
Enquanto Doidivânio usufruía dos seus privilegiados “ELA” tinha lá seus achaques de riquinha.
À noite, em casa, vendo o próprio rosto no espelho, “ELE” não se viu morto. A face revelava rugas e o cabelo estava amorfo. Estranhamente, isso não o incomodou. Era como se estivesse permitindo-se um prazer letárgico que lhe seria tirado a qualquer momento, quando finalmente se decidisse a beber o veneno que havia preparado.
Muitos meses depois ensaiava diálogos com colegas invisíveis, sobre assuntos sem pé nem cabeça: amante/futebol/religião. Conversas que às vezes evoluíam para questões existenciais e afinidades entre “ELE” e o LULA, sem intermediário. De repente passava a macumba, candomblé, e por aí afora. Noutros; extasiava com sonoras gargalhadas. Só que tudo isto tinha seu preço: a infelicidade.
No dia fatídico em que deixaria sua vida para viver outra radicalmente distinta, o sol estava alegre e lançava suas pontas implacáveis a quem se aventurasse a desafiá-lo. A chuva que caíra à noite em nada melhorara o mormaço. Todavia, tinha pressa.
Ouvia-se o som de orquestra, alguém estava festejando sua morte. Paralelamente, foram servidas bebidas; e pelo visto comidas caras como: lagosta e caviar.
Já passava das duas da tarde e o LULA suava tanto que alguns fios de seu cabelo pregavam na testa e fazia deslizar os óculos.
Na sua memória, o desfecho era sempre o mesmo: “ELE”, deitado de bruços, morto e alguém sussurrava:
– Que bom! Que coisa boa!
Viver na cidade é assim mesmo. Tem-se que acompanhar as loucuras coletivas, uma vez que a sua piração individual não conta nas estatísticas do governo.
Os psiquiatras dizem que uma em cada quatro pessoas tem alguma deficiência mental; pois eu vou mais além, afirmo que das quatro pessoas, três são retardados. Onde a primeira pessoa é o próprio psiquiatra; a segunda com certeza é o LULA; a terceira pode ser Doidivânio. Assim, se policie e fique de olho, se você achar que um deles parece normal...
Deus abençoe o filho da puta do psicopata: suicida burguês!
(julho/2010)